Jornal de Negócios
País falha as metas definidas pela Comissão Europeia ano após ano. A solução, dizem os especialistas, passa pela definição de políticas integradas, assim como por estabelecer pontos de recolha porta a porta e definir uma taxa pelo lixo criado (e não pelo consumo de água).
Há anos que Portugal continua sem atingir as metas definidas pela Comissão Europeia no que concerne à recolha de resíduos urbanos. E vai continuar assim. Pelo menos é o que indica o “Early Warning Report”, que analisa o progresso dos Estados-membros da UE em relação às metas de reciclagem. Portugal é um dos 10 países que estão em risco de não cumprirem as metas de reciclagem de resíduos urbanos (55%) e de resíduos de embalagens (65%) até 2025. Para Rui Berkemeier, técnico de resíduos na associação ambientalista Zero, é um cenário que já tem vinte anos. A opinião é partilhada por Ana Trigo de Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, que acrescenta que reiteradamente Portugal faz parte, globalmente, de um conjunto de países incumpridores na União Europeia. O ambientalista da Zero aponta que há muitos resíduos que vão diretos para aterro ou para incineração sem passarem por uma segunda via de serem reciclados (separados e tratados). A Zero vai mesmo mais longe e afirma que Portugal voltou aos níveis anteriores à pandemia, o que significa que “não houve qualquer progressão no setor e que o país não vai seguramente atingir a meta de 55% de reciclagem estabelecida para 2025”. Convém mencionar que a categoria “resíduos urbanos” se subdivide e que os valores diferem consoante o tipo de resíduo. “Portugal distingue-se relativamente à reciclagem das embalagens e faz parte dos países cumpridores – que são poucos da EU”, refere Ana Trigo de Morais que considera que a grande questão é “porquê só as embalagens é que cumprem as metas de reciclagem em Portugal”. A resposta, para a CEO da Sociedade Ponto Verde, está “na forma como nos organizamos”, nomeadamente o setor do grande consumo. O sistema de recolha foi montado e está a funcionar. “Os outros sistemas não foram capazes de se organizar e de pôr a reciclagem a funcionar”, acrescenta. Rui Berkemeier tem uma visão menos positiva da situação. O ambientalista afirma que o sistema das embalagens está completamente desvirtuado em termos de balanço financeiro. Na prática, o sistema implementado por Portugal define a responsabilidade alargada do produtor. O que significa que a empresa que coloca o produto no mercado é responsável por financiar o sistema de recolha e tratamento da embalagem quando chega ao fim de vida. A grande questão, afirma Rui Berkemeier, é que as empresas não estão a financiar na íntegra os custos – como era suposto – da recolha seletiva e triagem. A prova está, refere, em que as câmaras municipais que estão no sistema EGR têm um défice anual de 20 milhões de euros. “As entidades gestoras pagam menos 20 milhões de euros do que deveriam pagar”, aponta, acrescentado que isto leva a que as câmaras não efetuem muitos esforços na recolha seletiva, dado que isso iria aumentar os seus custos. Na fundo, “há uma barreira económica que tem limitado o desenvolvimento da recolha seletiva a sério em Portugal”, afirma Rui Berkemeier. A acrescentar a isto, há que referir que os valores dados pelos produtores sobre o número de embalagens colocadas no mercado e os das efetivamente recolhidas “não batem certo”. Um problema com décadas O ambientalista da Zero aponta que há anos que os agentes do setor utilizam verbas públicas (oriundas dos consumidores de eletricidade) para financiar a queima de resíduos urbanos, diga-se a incineração. Valor que poderia ser usado para fazer uma segunda separação. A grande questão é que Portugal fez uma sucessão de erros, com a agravante de que “ainda nenhum foi resolvido”. Um exemplo? “O modelo de recolha seletiva, que assenta no ecoponto”, refere o ambientalista. Porquê? Porque o sistema que permite maiores taxas de reciclagem – comparado com o ecoponto – é a recolha porta a porta. A razão, explica, é que este sistema obriga a uma comunicação porta a porta, assim como a dias de recolha certos. Uma solução que também deveria ser utilizada nos resíduos orgânicos. Rui Berkemeier aponta uma outra solução. As pessoas – e as empresas – pagam uma taxa de acordo com o consumo de água. O que desvirtua e não é justo para certos negócios. O mais correto seria o pagamento estar de acordo com a quantidade de lixo criado. Hoje, por exemplo, uma lavandaria paga mais de taxa de resíduos que um restaurante. Mesmo produzindo muito menos lixo. O ambientalista acredita que se o cálculo fosse pelo lixo criado haveria um incentivo direto à separação de lixo e à reciclagem por parte deste tipo de negócios. Afinal, há maior incentivo do que o Estado “ir à nossa carteira”? Políticas não alinhadas A verdade é que praticamente todos os agentes envolvidos no processo acomodaram-se e foram deixando que o país continuasse a não cumprir as metas. Em causa não só a falta de investimento como do alinhamento das políticas públicas com os instrumentos de financiamento. Para Ana Trigo de Morais, estes são dois fatores que ajudam muito a explicar o motivo porque Portugal se deixou ficar como incumpridor crónico das metas de reciclagem dos resíduos urbanos. Quem trabalha na área tem uma sensação de frustração porque, ano após ano, promessa atrás de promessa, os números continuam a não subir. “Já se fizeram vários PERSUS e a maior parte deles não são cumpridos”, aponta a CEO da Sociedade Ponto Verde. Situação que, aparentemente não causa desconforto, pelo menos até haver uma reprimenda da Comissão Europeia. Aterros estão saturados, diz a Sociedade Ponto Verde A isto há que juntar um outro problema, que na opinião de Ana Trigo de Morais, é ainda mais grave: a saturação dos aterros. A executiva alerta que há vários aterros que estão a chegar ao limite da sua capacidade. E isto é crítico “porque não há espaço para colocar o lixo”. Os aterros que fecharem irão, através de camiões, deslocar o lixo para outros locais, com as consequências associadas. E estas não incidem só em termos de pegada de carbono, custos de transporte ou desperdício. “Mesmo cumprindo as metas da reciclagem estamos a enterrar 31 milhões de euros por ano de embalagens no aterro em vez de as reciclarmos”, afirma Ana Trigo de Morais, acrescentando que é um valor económico e ambiental muto grande que se perde. Há ainda a questão dos resíduos elétricos e eletrónicos (REE). Resíduos que, numa sociedade que se quer digital, não são reciclados em quantidade suficiente para cumprir as metas. Sendo que muitos deles não só são poluentes como materiais perigosos. “Falta-nos uma política integrada”, aponta Ana Trigo de Morais, que afirma ainda que o país continua sem olhar para os verdadeiros problemas. São eles os REE, os biorresíduos, os resíduos perigosos e a dificuldade em ter uma política alinhada para aproveitar a circularidade da economia dos resíduos. Para a gestora, este é o grande desafio: aproveitar a circularidade dos resíduos, por um lado, assim como “ter fortes instrumentos de fiscalização sobre o que se passa com os resíduos do país”. Algo que não está a acontecer porque “foi uma demissão das autoridades”. E a (tudo isto) junta-se um outro problema: a falta de reporte e recolha de informação de qualidade sobre o setor. Mas, mais do que tudo, para Ana Trigo de Morais, o relatório da Comissão tem a particularidade de chamar a atenção para os outros tipos de resíduos. Porque a reciclagem não se esgota nas embalagens. “E neste momento a prioridade são os resíduos orgânicos, que é preciso montar, à escala do país inteiro recolha” e, depois, “montar nos outros sistemas, sistemas de incentivos à recolha”. A verdade é que, na opinião da CEO da Sociedade Ponto Verde “se conseguirmos montar isto, de forma integrada, conseguimos cumprir as metas da reciclagem”. Já Rui Berkemeier considera que o importante é alterar os modelos económicos da gestão dos resíduos urbanos, porque “funciona exatamente ao contrário do que deveria funcionar”. Razões para a estagnação da taxa de reciclagem – Insistência na recolha seletiva efetuada através de ecopontos em vez da recolha porta a porta; – Fraco tratamento dos biorresíduos, os quais representam cerca de 40% do total dos resíduos produzidos nas nossas casas e no comércio e serviços (cerca de 1,9 milhões de toneladas), o que significa que o tratamento dos biorresíduos foi efetuado apenas para 19% do potencial (cerca de 353 mil toneladas); – Quase inexistência de recolha seletiva de biorresíduos (resíduos orgânicos), tendo-se verificado a recolha de apenas 8% (cerca de 147 mil toneladas); – Subfinanciamento do sistema de recolha seletiva pelas entidades gestoras de embalagens com prejuízos para as autarquias da ordem dos 35 milhões de euros anuais; – Subdeclaração fraudulenta das embalagens colocadas no mercado, constatável pela diferença entre as embalagens declaradas pelos produtores (16%) e as embalagens que são identificadas nas caracterizações de resíduos urbanos (27%); – Taxa de gestão de resíduos muito reduzida que não desincentiva o envio de materiais recicláveis para aterro ou para incineração; – Desperdício de centenas de milhões de euros do último quadro comunitário de apoio, gastos de forma muito pouco criteriosa, muitas vezes favorecendo investimentos que só vão agravar as dificuldades de cumprimento das metas (contentores semienterrados, recolha de biorresíduos com sacos óticos misturados com os resíduos indiferenciados, maior capacidade para produzir combustíveis derivados de resíduos).