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Todos os anos as embarcações geram resíduos que, agora, podem ser reaproveitados, utilizando a lógica da economia circular. A tecnologia já existe, no porto de Setúbal, apenas tem de ser disseminada por mais infraestruturas. É impossível pensar em mercado global sem considerar o transporte marítimo. Todos os dias, milhares de navios percorrem os oceanos a transportar produtos, alimentos e matérias-primas. Acontece que isso acarreta uma pressão considerável no ecossistema marinho. Principalmente, se não for acautelado todo um conjunto de boas práticas de sustentabilidade. As águas residuais dos navios, por exemplo. Há umas décadas não havia qualquer tipo de inconveniente. A lavagem dos porões era feita em alto mar, com a correspondente descarga. Hoje isso não é possível, dado que há regras que o impedem. Como lembra Nuno Matos, diretor-geral da Eco-Oil, com entrada em vigor da Marpol, Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição do Mar por Navios, fez com que todos os resíduos gerados a bordo dos navios tivessem de ser tratados e encaminhados. “Esta alteração legal fez com que, de algum modo, pudéssemos ter um ambiente mais limpo”, frisa. Na mesma linha, Francisco Ferreira, presidente da Zero, acrescenta que a descarga de águas residuais de navios é regulada pelo Anexo IV da Marpol, que define os sistemas de tratamento, regras de vistorias e emissões de certificados, e estabelece as condições em que é autorizada a descarga no mar, bem como os meios necessários para a receção nos portos e terminais. O ambientalista aponta ainda que a descarga de águas residuais é permitida quando o navio tem instalado a bordo uma instalação aprovada para tratamento de águas residuais; descarregue águas residuais desinfetadas por um sistema aprovado, a uma distância superior a 3 milhas náuticas da terra mais próxima; caso as águas residuais não tenham sido sujeitas a tratamento prévio, a uma distância superior a 12 milhas náuticas da terra mais próxima quando o navio estiver em rota e procedendo a não menos de 4 nós; como uma taxa de descarga de esgoto de acordo com a resolução MEPC.157. Mas não foram só as regras que mudaram. O próprio desenho dos navios tem vindo a sofrer alterações. Segundo Nuno Matos, há uns anos, aquando do desastre ambiental provocado pelo Prestige, o navio tinha então casco simples, algo que deixou de existir. “Neste momento, os navios têm casco duplo, o que faz com que a carga e o lastro já não se misturem”. O que isto significa exatamente? O responsável lembra que, há muitos anos, os resíduos que apareciam na praia de Carcavelos resultavam da “lavagem dos tanques da carga, porque necessitavam de vir com lastro para navegarem em segurança e quando carregavam o navio esse lastro era deitado fora, para garantir o espaço para a entrada do combustível”. O responsável da Eco-Oil explica ainda que o casco duplo não só aumenta a segurança da navegação, como torna os navios mais seguros do ponto de vista ambiental. Com a vantagem de o casco duplo proteger de algo que antes acontecia: a contaminação biológica e a ameaça à biodiversidade. “As águas de lastro são a grande responsável pela entrada de espécies invasoras em territórios costeiros”, aponta. Mas, acrescenta, também aqui há novidades. “Há uma convenção – a Convenção de Águas de Lastro – que foi colocada em vigor e que, a partir de 2024, e que obriga todos os navios a terem tratamento destes vetores”. Economia circular nas águas residuais dos navios E qual o impacto das águas residuais dos navios na biodiversidade marinha? A resposta de Francisco Ferreira é imediata: o principal impacto destas águas residuais dos navios, quando descarregadas no meio aquático sem tratamento prévio, relaciona-se com a alteração de níveis de nutrientes, organismos patogénicos e parâmetros microbiológicos, que desequilibram os processos biológicos da vida marinha. E é aqui que entra a Eco-Oil. A empresa não só presta serviço de recolha e tratamento das águas residuais dos navios, como as transforma em combustível. “O processo da Eco-Oil é idêntico ao de uma estação de serviço, mas ao contrário”, explica Nuno Matos, referindo que os navios “vêm aqui despejar os seus depósitos”, seja porque vão mudar de carga ou porque têm de ser reparados. Nessa situação têm de ser descontaminados, algo que é feito através da utilização de água que, depois de usada, é “descarregada” na Eco-Oil. A questão, aponta Nuno Matos, é que essas águas estão contaminadas em média com 15% de resíduos hidrocarbonetos, que tinham elevado potencial. De tal forma que, “a partir de 2012 ,começou a ser uma matéria-prima para a produção de um combustível que fosse colocado no mercado com o mesmo estatuto do fuelóleo que sai de uma refinaria”. A novidade, aponta o responsável, é que, no ano passado, obtiveram a certificação de sustentabilidade para este combustível (o selo ISCC Plus) – “fomos a primeira empresa no mundo a obtê-lo” – que valida a origem da matéria-prima (100% resíduos), faz a análise de vida do processo da Eco-Oil e compara-o com o processo de uma refinaria. “É daí que sai a redução de emissões de 99,75% de CO2 que o nosso combustível retira cada vez que é colocado no mercado, face ao seu elemento comparativo.” A explicação, segundo Nuno Matos, está no facto de o ciclo de vida do combustível de refinaria ser muito longo. O que implica um consumo de CO2 “gigante”. Já no processo de aproveitamento das águas residuais dos navios parte-se de um resíduo – logo não tem CO2 – e promove a economia circular. E os números indicam que, em 2021, o EcoGreen Power (nome do combustível produzido pela Eco-Oil) evitou a emissão de 96 mil toneladas de dióxido de carbono na indústria Atualmente, o combustível daí resultante é consumido por algumas indústrias. “Hoje, o atum Bom Petisco é feito com base na nossa tecnologia”, refere Nuno Matos, que acrescenta que tem como clientes desde a indústria alimentar – que tende a ser mais sensível às questões ambientais – a indústrias como a Cimpor. O diretor da Exo-Oil acrescenta ainda que atualmente a empresa não tem “stock”, que todo o combustível produzido está vendido à partida. Tem uma capacidade instalada para 30 mil toneladas ano de produção de combustível e, neste momento, está apenas a fazer 20 mil. A empresa avança ainda que tem capacidade para processar até 370 mil toneladas de resíduos, sendo um dos maiores “players” europeus na gestão de resíduos de hidrocarbonetos, reciclando 99% da matéria que processa, em Setúbal. “Cerca de 2 a 3% de todo o bicarbonato gerado na atividade marítima cria um resíduo”, aponta Nuno Matos, que acrescenta que são milhões de toneladas de combustível que é utilizado todos os anos na atividade marítima – e que os resíduos daí gerados, num conceito de economia circular, podem ser utilizados nos portos. “Nos portos principais o movimento de resíduos é gigante”, explica Nuno Matos, sublinhando que “esses portos não estão a desenvolver a capacidade de regeneração”. Como é que tudo isto funciona? Na prática, os navios entram no porto e são devidamente lavados com água do mar, que depois é tratada e reintroduzida no seu ambiente. Os resíduos que são retirados nas águas contaminadas – os tais hidrocarbonetos – são depois tratados e transformados em combustível. O que ainda falta fazer Se por um lado era muito interessante que a tecnologia da Eco-Oil fosse utilizada por mais portos que não apenas o de Setúbal (onde a empresa está sediada), por outro, e como refere Francisco Ferreira, é preciso “rever a legislação, no sentido de ‘ampliar’ o conceito das águas residuais produzidas a bordo dos navios (englobar águas de piscinas, ‘spas’, lavagem de porões, lavagem de ‘scrubbers’, provenientes de biodigestores); proibir a descarga de águas residuais no meio aquático, em porto ou no oceano, independentemente do navio ter implementado ou não tratamento; conciliar a convenção das águas de lastro com esta temática; definir as condições de realização de alguns trabalhos em porto, como a varredura de porões e decapagens; criar mecanismos financeiros de incentivos à descarga para meios portuários de receção de resíduos nos Regulamentos de Tarifas dos portos”. O ambientalista considera que as práticas atuais não são suficientes e que tem de existir uma maior pressão, através da legislação e comunicação, com os armadores (aumentar descargas em terra), portos (para terem meios portuários de receção de resíduos disponíveis em número e volume para receberem as águas residuais) e destinatários em terra (flexibilidade para compatibilização de horários de receção das descargas dos operadores com escalas dos navios). Questionado sobre que avaliação faria dos portos portugueses, o presidente da Zero afirma que “está a ser dada a resposta adequada dentro das limitações da legislação internacional”. Isto porque os portos nacionais “proíbem a descarga de águas residuais em porto, ainda que tratadas. Ou seja, não podem ter como destino o estuário ou mar. São disponibilizados meios portuários para receber as águas residuais ou os resíduos“, acrescenta o ambientalista. O que podemos fazer Descarte correto de resíduos O descarte de resíduos em alto-mar continua a ser uma das principais preocupações ambientes, pelo foco de poluição que causa. Além de cerca de 2,5 milhões de toneladas de plástico no mar, as chamadas “marés negras”, manchas de hidrocarbonetos provenientes de petróleo e derivados, são outra das grandes ameaças ao ecossistema, representando 10% da poluição no mar segundo a Agência Portuguesa do Ambiente. Para evitar a contaminação do meio marítimo por resíduos e químicos, é fundamental promover o seu descarte correto através de processos de recolha, tratamento e reciclagem adequados. Valorização de resíduos gerados pelas atividades Também no sentido de evitar o descarte e desperdício destes resíduos, há algumas atividades que prolongam o seu ciclo de vida útil através da transformação em novas matérias. É o caso dos hidrocarbonetos transportados nos navios-tanque, que, corretamente recolhidos e processados, dão origem a novos fuel mais sustentáveis e reforçam a economia circular. Consumo sustentável e informado A informação e educação para o tema da preservação do ambiente são fundamentais numa estratégia de sustentabilidade da atividade marítima. Por um lado, deve construir-se um quadro legal, apoios e políticas que fomentem opções mais seguras para os operadores e os envolvam na transição para uma atividade mais sustentável. Por outro, a informação ao público é uma forma eficaz de alertar, prevenir e mudar comportamentos de risco sobre o meio marítimo, como o lixo no oceano, espécies animais ameaçadas ou perigo para a saúde pública. Tanto enquanto entidades e empresas, como cidadãos individuais, é importante manter uma atitude constante de alerta e consciencialização para a forma como exploramos os recursos marítimos. Atitudes de prevenção contribuem para mitigar os riscos no ecossistema e na saúde pública, fomentando assim uma economia do mar mais sustentável para o futuro.