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Portugal tem milhares de furos, mas ninguém sabe quanta água estamos a tirar do chão A Agência Portuguesa do Ambiente tem identificados 22.794 pontos de água subterrânea em território nacional. Mas é difícil controlar o volume de água que está realmente a ser extraído do subsolo, mesmo num período de seca
Em tempo de seca, as atenções concentram-se nas albufeiras, onde o nível de água acumulada se vai reduzindo de forma preocupante. Mas ouve-se falar menos das águas subterrâneas, esses “Alquevas que correm debaixo dos nossos pés”, como foram já chamadas. Na verdade, representam 74% da água doce que é consumida em Portugal, dos quais 89% são utilizados para irrigação. Sabemos avaliar com precisão, no entanto, quanta água subterrânea está a ser consumida? Não. “A Agência Portuguesa do Ambiente (APA), quando muito, sabe quantos furos há; não sabe quanto é que está a ser tirado de cada furo”, diz Rodrigo Proença de Oliveira, autor de um estudo sobre disponibilidades hídricas actuais e futuras de Portugal feito para a APA e apresentado no final de 2021. Este estudo concluiu que, nos últimos 20 anos, a disponibilidade de água reduziu-se cerca de 20% em Portugal. A precipitação em Portugal e Espanha nas últimas décadas diminuiu cerca de 15%, prevendo-se uma redução entre 10 e 25% até ao final do século. No portal do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) estão “22.794 pontos de água subterrânea (poços, furos, nascentes…) identificados”. Destes, “7984 têm informação detalhada referente às características construtivas (dados de perfuração, geologia…)”, adiantou a APA em informação enviada ao PÚBLICO. A agência tem uma rede de monitorização da quantidade e da qualidade das águas subterrâneas, desde as décadas de 1970 e 1980. A primeira tem 542 estações de medição e a segunda 860 estações, disse ao PÚBLICO o serviço de imprensa da APA. Rodrigo Proença de Oliveira, investigador do CERIS – Investigação em Engenharia Civil e Inovação para a Sustentabilidade do Instituto Superior Técnico, salienta que a monitorização que se faz é insuficiente. “Porque tem custos, e infelizmente não tem sido a prioridade do Ministério das Finanças”, justifica, em declarações ao PÚBLICO. Que uso se dá às águas? O problema que Rodrigo Proença de Oliveira destaca na monitorização não é tanto o acompanhamento do nível piezométrico – mede-se a altura a que a água se encontra e, se está abaixo do percentil 20, a situação é considerada preocupante. “O grande problema tem a ver com a utilização das águas, porque obviamente há milhares de furos, se não dezenas de milhares.” Se os números de “pontos de água subterrânea (poços, furos, nascentes…) identificados” pela APA são 22.794, vários investigadores com quem o PÚBLICO conversou, como o hidrogeólogo José Paulo Monteiro, do Centro de Ciências e Tecnologias da Água da Universidade de Faro e também do CERIS, falam num cálculo, só para o Algarve, uma região com 5400 km2, de cerca de 25 mil furos. “Obviamente que isto é muito variável. Na zona do Algarve, Aveiro, Setúbal, há muitos furos porque aí há capacidade. Mas não se pode pegar no valor do Algarve e multiplicar pela área toda do país, varia muito no espaço”, sublinha Rodrigo Proença de Oliveira. “Acredito que seja perto de uma centena de milhar. Mas este é um número que estou a lançar para o ar…”, acautela, no entanto. “Actualmente, já não se fazem tantos furos como no passado”, constata José Paulo Monteiro. Devido à seca, foram travadas novas captações de água. “Nas massas de água subterrânea que se encontrem em estado crítico (nível inferior ao percentil 20 da média de cada mês) não são concedidas novas autorizações para extracção de água”, diz a informação da APA. Qualquer nova captação de água tem de ser sujeita a um pedido de prospecção à APA, para emissão de um título para utilização dos recursos hídricos. “Nos períodos de seca tem-se verificado um acréscimo de pedidos de autorização para captação de águas subterrâneas, para diversos fins, em todo o país; em regra são cerca de 20.000 pedidos por ano”, diz o gabinete de imprensa da APA. Em anos de seca, aumenta a pressão. José Pimenta Machado, vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), já tinha confirmado ao PÚBLICO esses números em Abril do ano passado e com uma promessa a reboque: “Todos os anos licenciamos mais de 20 mil furos em Portugal e sempre que há seca aumentam os pedidos de captação. Por isso, temos que aumentar a nossa capacidade de controlar, monitorizar e fiscalizar os títulos emitidos e as condições fixadas para aquilo que queremos: um uso sustentável da água.” Paga-se, mas pouco A lei estabelece uma série de critérios para autorizar um furo, como, por exemplo, dizer para que vai servir a água. É delimitado um volume de água que pode ser tirado. “Por exemplo, na rega, tem a ver com a área regada e com a cultura”, explicou José Paulo Monteiro. “Mas depois não há maneira de controlar o que é que essas pessoas tiram”, reconhece. Mas paga-se pelo volume de água que é extraído? “Quando as administrações de região hidrográfica da APA emitem o título da utilização dos recursos hídricos, é determinado um volume da água e paga-se uma taxa em função desse volume. Só que as quantias são irrisórias”, explica Judite Fernandes, da Unidade de Águas Subterrâneas do Laboratório Nacional de Energia e Geologia. Por exemplo, no caso dos campos de golfe, o cálculo depende de critérios como quantos campos tem, quantos buracos. “Mas posso-lhe dizer que para um golfe de 18 buracos, o pagamento anual da taxa andará à volta de 1000-1500 euros. E para a agricultura ainda é menos”, conclui. De acordo com a lei, os grandes consumidores de água subterrânea deveriam ter contadores nos seus furos. “Mas a maior parte não tem. E depois também não são fiscalizados”, assinala Rodrigo Proença de Oliveira. “A isto também poderíamos chamar monitorização, mas não é a monitorização de qualidade e quantidade, é monitorização dos consumos. Essa praticamente não existe”, conclui o hidrogeólogo. “Há furos no Algarve que tiram 100 litros de água por segundo de baixo do chão; ora um litro por segundo dá para dar a beber a 400 pessoas”, contabiliza o investigador. “Muito mais de metade da água que se gasta todos os dias no Algarve continua a ser dos aquíferos”, avança José Paulo Monteiro. Consome-se mais água subterrânea do que das barragens nesta região. Há muitos sistemas de abastecimento de água privados no Algarve, para servir a ocupação dispersa, que é um tipo de ocupação do território muito comum no Algarve – aldeamentos turísticos, bairros. “Quando chega aqui a Faro e olha para a serra, parece um presépio durante a noite, não é? São milhares de luzes… É precisamente nestes locais que há sistemas de abastecimento privados, que são sustentados por águas subterrâneas”, exemplifica. O investigador da Universidade do Algarve alerta ainda para um obstáculo no controlo destas captações da água que está debaixo dos nossos pés: “Há um problema que tem aspectos práticos: em Portugal as águas subterrâneas são privadas. Se tiver uma quinta, é dono do subsolo da quinta até ao centro da Terra. É muito difícil fazer a gestão.” Judite Fernandes admite que esta “é uma discussão que está na ordem do dia, a questão da água subterrânea ser privada e não pública”. “Há muita gente preocupada por causa desta limitação da actuação. Porque, depois, cada um na sua propriedade acaba por fazer o que bem entende e a água é um bem comum”, lamenta. Isto faz sentido? “Se calhar, não faz. E face ao quadro que temos aí pela frente, com as alterações climáticas, se calhar faz cada vez faz menos sentido”, conclui Judite Fernandes, que é também membro da comissão executiva do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA). Agora começa a ser exigido aos utilizadores que tiram volumes mais significativos que instalem contadores. “É um trabalho para o futuro, que já se começou a fazer no caso das captações mais importantes, mas nas mais pequenas não”, salienta José Paulo Monteiro. Num trabalho publicado no mês passado sobre a actual estratégia de gestão da água em tempo de seca, Joaquim Poças Martins, professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e especialista em Gestão Hídrica, destacava a questão do uso e abuso de água no país. O especialista constatava que em Portugal usamos a água subterrânea “à vontadinha” – e que, em bom rigor, não devia ser assim, deveriam ter uma licença, “mas a maioria não tem e, mesmo com licença, não paga”. Por fim, Poças Martins referia que “em Portugal, [a água para a agricultura] quase não se mede nem se paga” e concluía que, como a água para fins agrícolas em Portugal é “quase de graça”, os agricultores não têm incentivos para poupar água. E o dinheiro do PRR? Maria Paula Mendes, do CERIS -Investigação em Engenharia Civil e Inovação para a Sustentabilidade do Instituto Superior Técnico (Lisboa), tem ideias sobre como se poderia agilizar todo este sistema cheio de falhas. “Pensava que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) estaria um pouco mais adaptado a pensar na monitorização deste recurso [as águas subterrâneas], mas não está, fala é muito da dessalinização para o Algarve”, salienta. “Acho que está na altura mesmo de gastar um pouco mais daquele dinheiro do PRR para conhecermos melhor os nossos recursos.” As novas tecnologias podiam dar uma grande ajuda, diz. “Podíamos ter sondas a monitorizar a água subterrânea em tempo real. Fala-se tanto na digitalização, mas parece que ainda não chegou a estas questões. Hoje em dia os equipamentos já não são assim tão caros… Ainda há muita coisa que se podia fazer para melhorar e que não está a ser feita.” Era preciso ter uma boa modelização de cada aquífero, para saber como responde quer à recarga (a água que os alimenta, proveniente da precipitação), quer ao uso da água, sublinha Rodrigo Proença de Oliveira. “Assim, quando o nível de uma determinada zona começasse a descer, teríamos uma forte suspeita de que ali haveria um uso excessivo não permitido de água, e então far-se-iam acções de fiscalização mais focadas no terreno”, exemplifica. Sem haver isto, é muito difícil haver controlo. “Não é exequível a Agência Portuguesa do Ambiente andar à procura, a fiscalizar os contadores de dezenas ou centenas de milhares de pessoas”, considera Rodrigo Proença de Oliveira. E conclui: “Mais grave do que haver ilegalidade, é o desconhecimento.” —– A água que antes estava a 20 metros do solo agora apenas aparece aos 100 Carlos Dias Perante ciclos de seca intensa, os agricultores e produtores pecuários têm na abertura de furos o derradeiro recurso para garantir o abeberamento do gado e a produção de pastos, forragens e fenos para alimentar os animais em períodos críticos como os que estão a ser vividos neste momento, pese embora as chuvas das últimas duas semanas. A falta de alimentos e de água desesperam um número crescente de agricultores no norte, centro e sul do país. Mas a drástica redução que se observa nos lençóis freáticos sobretudo na região alentejana e no nordeste transmontano, já obrigou o Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) a restringir, ao máximo, a abertura de novos furos, como relatou ao PÚBLICO, Manuel Barreirão, dono de uma empresa de captação de água, enquanto abria um furo no concelho de Serpa. “O ministério do Ambiente é que manda” ao não aprovar pedidos de licenciamento para a captação de água. Para mitigar o stress hídrico que afecta uma área significativa do território nacional, o Governo publicou na passada semana um despacho que “simplifica” criação de charcas, pequenos reservatórios de água que passam a estar isentos de licenciamento na maior parte dos casos. Noutro ponto do território, na Guarda, Francisco Varandas acrescenta aos condicionalismos impostos pelo Ministério do Ambiente e da Acção Climática as precárias condições económicas dos poucos agricultores que ainda permanecem na região centro do país. “Não há muitas aberturas de furos porque o dinheiro é pouco e a agricultura bateu no fundo nas nossas aldeias”, frisando que as pessoas abandonaram as suas terras e deixaram de produzir as batatas, o feijão ou as couves. “E esta realidade acaba por ter reflexos até na abertura de furos que já não são necessários”, constata. A sul do Tejo as restrições à abertura de furos “são enormes”, confirma Adelino Casola Bernardino, que também se especializou na abertura de furos. E a norte do rio, na região da Golegã e noutras onde se pratica agricultura de regadio, “também se criam dificuldades”. Na bacia do Tejo os licenciamentos para abrir furos “são quase inexistentes”, acrescenta Casola Bernardino. As opiniões divergem quando se coloca a questão da reserva de água subterrânea. “Na minha observação constato que os furos na região centro e no norte do país têm alguma água. O Inverno foi chuvoso e houve recarga. “A excepção está no nordeste transmontano e no Alentejo”, sublinha o empresário da Guarda. Já Manuel Barreirão, diz que nota uma diferença quando abre furos: “Há 15 anos encontrava água até aos 20 metros. Agora tornou-se habitual abrir furos entre os 75 e os 150 metros, como está a acontecer no litoral alentejano, onde “99,9% da água consumida é proveniente dos lençóis freáticos” salienta Luís Dias, presidente da Associação de Agricultores de Grândola (AAG). Stress hídrico “As coisas estão a agudizar-se no maior aquífero da Península Ibérica”, nos sistemas de aquíferos: aluviões do Tejo e bacia Tejo-Sado (margens esquerda e direita), onde a precipitação “decresceu ao longo dos últimos 20 anos e o consumo subiu quase abruptamente”, sobretudo ao longo da última década. “Há um grande conjunto de poços que estão praticamente secos”, refere o presidente da Associação de Agricultores de Grândola, frisando que à medida que um poço seca, a alternativa está na abertura de furos que “não apresentam água senão para lá dos 100 metros”. Tornou-se recorrente: “Falta água faz-se um furo.” A pressão sobre os lençóis freáticos está a traduzir-se no estado sanitário do montado. “As árvores estão a secar”, conclui Luís Dias. Na região alentejana de Campo Branco, que se estende pelos concelhos de Castro Verde, Aljustrel, Ourique, Mértola e Almodôvar, Rita Alcazar, dirigente da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), fez ao PÚBLICO um balanço do stress hídrico que persistentemente afecta a actividade agrícola e pecuária na região. “Apesar das últimas chuvas e trovoadas, a alteração tem-se revelado pouco significativa.” E explica a razão: “Chove, mas o calor e o vento intenso que se seguem quase anulam a humidade no solo e mantêm-se os aquíferos com débitos reduzidos.” E como já não se fazem poços “abrem-se furos porque têm maior capacidade de encaixe”. A dirigente da LPN questiona-se: “Pergunto-me até que ponto existe conhecimento sobre o número de furos existentes em Portugal.” Estado não sabe Mário de Carvalho, docente e investigador em Ciências Agrárias na Universidade de Évora, reforçou ao PÚBLICO a questão levantada por Rita Alcazar. “O Estado não sabe quanta água está a ser extraída.” E no que se refere à perda de recursos hídricos subterrâneos, o país está em maus lençóis. “Temos mais furos a extrair água, seja na região oeste, na bacia do Tejo, litoral alentejano ou no Algarve”, que é canalizada para a rega “à custa das reservas subterrâneas num volume muito superior à sua reposição”. Furos a 400 metros O investigador classifica a situação como “alarmante”, e dá um exemplo: “Na região oeste já se fazem furos até 400 metros” e no Alentejo assiste-se à instalação de culturas permanentes com “altos consumos de água num clima em que chove cada vez menos, e não se ajuda o sequeiro.” Um relatório publicado em Março pela OCDE, sobre o desempenho ambiental de Portugal, concluía que “a seca é estrutural e a escassez de água é motivo de grande preocupação nas bacias dos rios Sado e Mira e nas bacias hidrográficas do Algarve”. O boletim semanal das albufeiras, publicado esta semana pelo Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH), assinala que, das 82 barragens públicas monitorizadas, 40 apresentam um volume de água armazenada superior a 75%. De uma capacidade total de 13.058 hectómetros cúbicos (hm3), os reservatórios nacionais armazenavam, no dia 31 de Maio, 10.495 hm3 (79%). Apesar de persistir uma grande diferenciação nos volumes armazenados nas barragens a norte do país e a sul do Tejo, a entrada no período estival que se aproxima garante algum conforto em termos de recursos hídricos para a agricultura irrigada, que ocupa, a nível nacional, uma superfície irrigável de 626 820 hectares e uma superfície regada de 562 255 hectares (pública e privado), cerca de 15% da superfície agrícola útil (SAU) nacional. A agricultura de sequeiro, cultura em terreno que não é regado, ocupa pelo menos 80% da superfície agrícola útil, cerca de 3,7 milhões de hectares. É nesta imensa área territorial, maioritariamente ocupada por actividades agro-silvo-pastoris, que os agricultores e os produtores pecuários se têm confrontado, anos a fio, com a extrema escassez hídrica. A retenção de água para as agriculturas de sequeiro, que não podem passar pelo regadio, é a solução que preconizam há décadas.