Visão
Hoje, dois mil milhões de pessoas vivem em stresse hídrico. Daqui a duas décadas e meia, serão cinco mil milhões. E Portugal está no caminho do desastre, com secas cada vez mais frequentes e intensas. Mas ainda há muito que podemos fazer
É fonte de vida, mas também é fonte de morte – estima-se que, anualmente, morra quase um milhão de pessoas (um quarto delas crianças) de doenças provocadas por água de má qualidade. Muita gente trabalha diariamente para que a água potável chegue a todos, remando contra uma corrente cada vez mais forte. Em 2050, devido às alterações climáticas (e ao aumento do consumo, que está a crescer duas vezes mais do que a população), dois terços da Humanidade serão afetados pela falta de água. Nem precisamos de olhar muito para a frente para descortinar o pesadelo e as ondas de choque: segundo as Nações Unidas, a falta de água poderá obrigar 700 milhões de pessoas a migrar, ao longo desta década. “É um problema que tem estado a aumentar”, diz Catarina de Albuquerque, que lidera a Sanitation and Water for Ali, iniciativa global que junta governos e organizações da sociedade civil do mundo inteiro. “E são os mais pobres que mais sofrem. Nas capitais dos países em desenvolvimento, a classe média tem água canalizada a preços baixos; quem vive em bairros informais depende de uma rede informal de abastecimento, a preços exorbitantes.” Mas desengane-se quem julga que a falta de água está confinada às regiões menos desenvolvidas, avisa. “Cada vez oiço falar mais de casos na Europa, incluindo em países insuspeitos, como a Suíça. Está a atingir todos.” Portugal encontra-se numa das regiões europeias que serão (e que já são) mais afetadas pela falta de água. Hoje, o País consome 40% a 80% da água disponível, o que é considerado um elevado stresse hídrico, mas a situação tende a piorar muito, dados os cenários climáticos, que apontam para diminuições significativas de precipitação no Alentejo e no Algarve. Há estudos em que se preveem secas de 15 anos, no final do século. No entanto, teimamos em utilizar água premium para fins menos nobres (em Lisboa, só 3% a 4% das lavagens e regas são feitas com recurso a águas residuais, quando em algumas cidades europeias chega a ser 40%). E, sobretudo, continuamos a perder quantidades colossais de água na rede: nas cidades, 30% a 35% esvai-se em “puxadas” e em fugas nas canalizações, envelhecidas e deterioradas; na agricultura, as perdas vão aos 70%. Em 2012, foi criado o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Agua, que tinha metas concretas de redução de perdas para 20%, no setor urbano, e 35% no agrícola, mas o programa nunca foi efetivamente aplicado. Prevenir antes de remediar Rui Godinho, presidente da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA) e ex-administrador da EPAL (empresa que reduziu as perdas de água em Lisboa de 25% para 10%), realça que há um problema sério com as infraestruturas, as quais não está a receber a devida atenção. “Um relatório da ERSAR [entidade reguladora] estima que estejamos com taxas anuais de reabilitação e renovação de 0,2% a 0,3%. A este ritmo, só daqui a 375 anos é que teríamos toda a rede coberta. Esses indicadores têm de subir pelo menos para 1,5%.” Para isso, é necessário alocar meios técnicos e financeiros, dada a incapacidade das entidades gestoras. “Algumas têm menos de dez mil clientes. Não conseguem melhorar as redes sem apoio. Aquando do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência], propusemos que fosse afeta à rubrica de gestão hídrica uma dotação de mil milhões de euros por forma a acudir a esta situação, mas não tivemos sucesso.” Há mais onde intervir, adianta, dados os tempos secos que já vivemos e os que se avizinham. “Esta situação de seca é sistémica e vai manter-se. Teremos progressivamente secas de 5, 10,15 anos, secas mais profundas, mais intensas e mais longas. É um problema que veio para ficar, e temos de saber lidar com ele. Isso passa por negociar bem com Espanha a gestão dos caudais e, principalmente, por valorizar os nossos recursos de água subterrâneos. Temos aquíferos riquíssimos, que deviam ser considerados reservas estratégicas. O Estado não pode permitir captações não licenciadas, como está a acontecer em todo o País – mais de dois terços dos furos são ilegais.” Acima de tudo, acrescenta, “há que colocar a gestão da água em Portugal no topo da agenda política”, antes que sejamos obrigados a adotar medidas drásticas. “Lá chegaremos ao dia em que vamos proibir encher piscinas, como já tem acontecido em França.” Apostar na dessalinização Há dois projetos de gestão de água que vão receber apoio financeiro através do PRR: a Barragem do Pisão e uma dessalinizadora no Algarve, a construir em Loulé ou em Albufeira, com capacidade para 24 mil milhões de litros, com um custo estimado de €50 milhões. Estão ainda planeadas mais duas (o secretário de Estado do Ambiente, Hugo Pires, disse recentemente que uma será na zona industrial de Sines). É este o caminho, defende Nuno Maulide, químico e professor catedrático na Universidade de Viena. “A necessidade de apostar na dessalinização é óbvia, porque cada vez há mais evidências que sugerem que vamos ter problemas consideráveis com o fornecimento de água, num futuro próximo. É verdade que o investimento inicial é enorme, tal como os custos de funcionamento, porque consome muita energia, mas a tecnologia já chegou a um ponto em que é sustentável e, além disso, Portugal tem vantagens claras, não só pela costa enorme mas também porque grande parte da sua energia vem de fontes renováveis.” Não é um tiro no escuro. Já há exemplos pelo mundo, com destaque para Israel, onde 85% da água potável tem origem em centrais dessalinizadoras. Mas mesmo Barcelona tem uma a funcionar, com capacidade para dar de beber a 1,3 milhões de pessoas. Há outras ideias em cima da mesa. O setor agrícola, por exemplo, tem insistido nas “autoestradas da água”: canais a ligar o Norte do País, onde há mais água, ao Sul, onde ela escasseia, em vez de a deixar correr para o mar. Independentemente do que se fizer, a realidade é que a gestão da água implica uma visão sustentada, e não remendos, diz Catarina de Albuquerque, da Sanitation and Water for Ali. “Precisamos de pactos de regime com vários partidos, para se adotarem medidas de longo prazo, que tenham em conta a previsibilidade do consumo de água e a evolução das alterações climáticas nos próximos 50 anos.”