Green Savers
01/11/22
Eficiência hídrica, secas e a escassez de água ameaçam tornar-se na próxima “pandemia” -O Presidente do Conselho Diretivo da APDA (Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas), Rui Godinho, alerta para o facto de a água doce em Portugal estar muito condicionada pelo clima. E destaca o Relatório das Nações Unidas, “Drought 2021”, segundo o qual as secas e a escassez de água ameaçam tornar-se na próxima “pandemia”.
A falta de água no mundo é uma realidade cada vez mais premente. Segundo a ONU, desde 2000 até a atualidade, o número e a duração das secas aumentaram 29%. São das principais ameaças das nações em desenvolvimento, mas também atingem os países ricos. Rui Godinho, Presidente do Conselho Diretivo da APDA (Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas), explicou à Green Savers que Portugal tem escassos (e pequenos) lagos naturais, pelo que a maior parte da água doce se encontra na precipitação, na que escoa superficialmente através dos rios, na que se infiltra (aquíferos) e na que está armazenada nas albufeiras. Está por isso, “muito condicionada pela sua dimensão e pela frequência e intensidade de secas e da consequente escassez que se vai sentindo de forma cada vez mais acentuada, ameaçando transformar-se numa situação sistémica, portanto, de longa duração”. O também membro do Conselho de Governadores do Conselho Mundial da Água explica que, do total de água disponível no planeta, mais de 97% estão nos mares e oceanos (água salgada) e apenas 2,5% são água doce. Dessa pequena percentagem, pouco mais de 2% apresentam-se sob a forma de gelo (estado sólido), principalmente na Antártida, no Ártico nos glaciares e, portanto, menos de 1% está disponível para consumo, segundo o Conselho Nacional da Água. De acordo com a mesma fonte, as necessidades em água da humanidade e dos ecossistemas terrestres “têm de ser satisfeitas” com base nos restantes 0,7% da água doce existente no planeta, que totalizam cerca de 10,7 milhões de quilómetros cúbicos. A distribuição desses 0,7% de água doce na Terra, num determinado instante, é a seguinte: 10.530.000 quilómetros cúbicos estão armazenados em aquíferos subterrâneos; 129.000 quilómetros cúbicos encontram-se a circular na atmosfera; 91.000 quilómetros cúbicos estão armazenados nos lagos naturais; 29.090 quilómetros cúbicos estão incorporados nos pântanos, solos e nos seres vivos; 2.120 quilómetros cúbicos encontram-se a escoar nos rios, volume constantemente substituído pela precipitação e o degelo registado nas bacias de drenagem. Em Portugal, acrescenta Rui Godinho, a relevância da água mede-se em geral pelos indicadores dos consumos médios dos principais utilizadores: abastecimento humano – 14/17%; agricultura – 70/73% e indústria – 6/10%. O perigo da insuficiência hídrica Os mais recentes relatórios e estudos internacionais, regionais e nacionais, incluindo Portugal, a Península Ibérica e a Bacia do Mediterrâneo comprovam isso mesmo. O responsável destaca o Relatório das Nações Unidas, “Drought 2021”, apresentado na Conferência do Clima de Glasgow em novembro de 2021 e, segundo o qual, as secas e a escassez de água, que atingem já hoje, com insuficiência hídrica, cerca de 2 mil milhões de pessoas em mais de 130 países, “ameaçam tornar-se na próxima ‘pandemia'”. Em Portugal, “felizmente, cerca de 95% da população tem acesso ao serviço de abastecimento de água e 80% ao saneamento de águas residuais, mercê dos investimentos de infraestruturação, capacitação e criação de centros de competência, lançados e executados nos anos 80 e 90 do século passado e início do XXI”, explica Rui Godinho, acrescentando que se trata do “bem mais precioso que há que ser preservado e valorizado por todos, particularmente na situação de ‘emergência climática’ que vivemos”. No entanto, o Presidente do Conselho Diretivo da APDA lamenta o facto de a água potável, que é essencial à vida, não ser acessível para milhares de milhões de pessoas em todo o mundo. E sublinha que a “extensão desta iniquidade se acentua ainda mais quando se acrescenta o indicador de mais de 2 mil milhões que são atingidos em todo o planeta por uma clara insuficiência hídrica, significando que o recurso água não lhes está acessível para qualquer tipo de uso”. Uma situação que favorece a criação de condições que podem “afetar gravemente a saúde pública” e a “ocorrência de doenças transmissíveis – hoje erradicadas com a complementaridade das respetivas vacinas -, bem como a eventual criação de ambientes para o surgimento de epidemias e pandemias de difícil controlo sanitário, com gravíssimas consequências na vida das populações e efeitos devastadores na economia, no ambiente e no desenvolvimento”, explica. Para o responsável, a adoção da dessalinização para obter água destinada a consumo humano “só deverá ser concretizada como ‘solução de fim de linha’. Ou seja, “quando estiverem esgotadas todas as possibilidades de recorrer conjugadamente aos recursos hídricos superficiais e subterrâneos, cujas disponibilidades deverão ser consideradas ‘reservas estratégicas para a segurança e defesa do País’, e a uma prática de utilização das águas residuais tratadas e de águas pluviais para os chamados ‘fins de segunda linha’ (irrigação, lavagem de ruas, sistemas de aquecimento e arrefecimento urbanos e industriais, promoção da biodiversidade)”. Países onde se encontram graves situações de carência “deverão também ser apoiados pelas organizações internacionais na procura de soluções técnicas e economicamente sustentáveis e adequadas às respetivas realidades sociais”, afirma Rui Godinho. Já em Portugal, para fazer face a este flagelo, há medidas simples e de fácil acesso que podem ser aplicadas em regiões que sofrem com a falta de saneamento básico, nomeadamente “infraestruturando e ligando à respetiva rede de saneamento, nas áreas em que se justifique ainda a adoção de soluções convencionais”, explica Rui Godinho. Para outras (950 000 alojamentos), acrescenta, que foram objeto de um trabalho de investigação pela Comissão Especializada de Inovação da APDA (20% da população), “recomendam-se soluções de pequena e média dimensão, tecnologicamente avançadas e apropriadas para áreas periurba-nas, loteamentos de baixa densidade e/ ou de montanha, onde se situam maioritariamente em Portugal”. Mais conflitos na procura de água Os conflitos em torno da água estão rapidamente a tornar-se numa realidade que podemos ter de enfrentar num futuro não muito distante e à questão “a água pode acabar”, Rui Godinho responde “se a água acabar, extingue-se a vida na Terra, tal como a conhecemos hoje”. E refere: “Espero que todos os responsáveis, a todos os níveis, e todos nós, cidadãos, tenham bem presente, nomeadamente o que ficou demonstrado, uma vez mais de forma brutal com a pandemia de covid-19, onde a água demonstrou a sua centralidade como recurso, não só raro, mas, principalmente, vital, como já escrevi e falei em diversos momentos e abordei outras vezes, nos últimos meses, bem como outros o têm feito, por todo o mundo, com toda a veemência e autoridade, em especial o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, quando indica que ‘a luta contra as alterações climáticas é o mais importante combate das nossas vidas’.” De resto, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) n.° 6 estabelece a meta de alcançar, até 2030, o acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos, e também prevê a gestão integrada dos recursos hídricos a todos os níveis, incluindo no que toca à cooperação transfronteiriça. Faltam apenas oito anos. Sobre estas metas e respetivo realismo, Rui Godinho não tem dúvidas: “Só boas políticas, novo pensamento e novos paradigmas poderão alterar as tendências que caracterizam hoje ainda o atraso no cumprimento dos ODS, designadamente o n.° 6 mencionado.” Para o responsável, a “obtenção de segurança hídrica, criando reservas estratégicas de recursos hídricos superficiais e subterrâneos, associadas à aplicação de princípios e práticas de boa governança às disponibilidades e aos serviços de água e saneamento, promovendo o seu uso eficiente em todos os setores consumidores, deverá constituir um pilar fundamental das políticas ambientais e de ação climática”. “Urge a sua generalização a todas as regiões já afetadas por secas, escassez de água e desertificação no mundo, incluindo em Portugal e Espanha, dada a forte interdependência e partilha de recursos hídricos nas principais Bacias Hidrográficas Internacionais da Península Ibérica (Douro, Tejo e Guadiana)”, alerta. O estudo Avaliação das disponibilidades hídricas atuais e futuras e aplicação do índice de escassez WEI+, encomendado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) a um consórcio de empresas, composto pela Nemus, Bluefocus e Hidromod, revelou recentemente que, nos últimos 20 anos, a precipitação em Portugal e Espanha diminuiu cerca de 15% e a disponibilidade de água cerca de 20%. Prevê ainda que esta tendência se acentue e que a disponibilidade de água diminua entre 10 a 25% até ao final do século. Para Rui Godinho, “são de esperar mais conflitos na procura de água e nas tentativas de acesso não controlado às reservas das bacias transfronteiriças”. Cita novamente o Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, quando refere que “os custos da inação são (e serão) sempre mais onerosos que os investimentos a realizar”, a que acrescenta: “Para construir soluções adequadas ‘no more business as usual”. Para assegurar a sustentabilidade das Entidades Gestoras em tempo de crise, o Presidente do Conselho Diretivo da APDA diz que é preciso gerir de forma “ainda mais eficiente a sua atividade, a prestação dos serviços de água e saneamento, combatendo o desperdício, desenvolvendo um controlo de perdas nas redes e nos equipamentos, além de executar, com eficácia, o PNUEA – Programa Nacional do Uso Eficiente da Água, com uma particular incidência nos consumos dos principais utilizadores – Urbano, Agrícola e Indústria – e promovendo a reutilização de águas residuais tratadas das ETAR”. Além disso, acrescenta o desenvolvimento e implementação, “o mais generalizadamente possível”, nos Centros Urbanos e Periurbanos, de “Soluções Baseadas na Natureza” (as chamadas “Nature Based Solutions”). Apesar de acreditar que os cidadãos já têm uma consciência cívica para reagir em relação ao problema da água, Rui Godinho ressalva que ainda “há muito a fazer, de modo permanente e verificando que as necessárias políticas públicas para o setor da água não sofrem permanentes descontinuidades, sempre que muda o Governo. Pelo contrário, são coerentes, eficazes e resilientes”. Quem também acredita que há, cada vez mais, cidadãos conscientes deste problema e que já estão a alterar alguns hábitos é Lídia Nascimento, ativista ambiental e fundadora do movimento “O Mar à Deriva”, que faz parte da Convenção das Organizações para um Oceano Limpo. No entanto, também lhe parece que muitas pesdisso, acrescenta o desenvolvimento e implementação, “o mais generalizadamente possível”, nos Centros Urbanos e Periurbanos, de “Soluções Baseadas na Natureza” (as chamadas “Nature Based Solutions”). Apesar de acreditar que os cidadãos já têm uma consciência cívica para reagir em relação ao problema da água, Rui Godinho ressalva que ainda “há muito a fazer, de modo permanente e verificando que as necessárias políticas públicas para o setor da água não sofrem permanentes descontinuidades, sempre que muda o Governo. Pelo contrário, são coerentes, eficazes e resilientes”. Quem também acredita que há, cada vez mais, cidadãos conscientes deste problema e que já estão a alterar alguns hábitos é Lídia Nascimento, ativista ambiental e fundadora do movimento “O Mar à Deriva”, que faz parte da Convenção das Organizações para um Oceano Limpo. No entanto, também lhe parece que muitas pessoas “apenas se preocupam com este problema quando não chove e que se chover um dia já não é necessário fazer nada, o que não é bom, nem real”. Cada um de nós pode tentar poupar Para a ativista, deveria haver muito mais informação e sensibilização da parte das entidades competentes, “pois só se ouve falar deste problema no verão, apesar de ser um problema constante aos longo do ano e dos anos”. Também considera que “não há informação para o público em geral sobre os litros de água que é necessário gastar para se produzir uma camisola, por exemplo, ou umas calças, ou para terem um bife no prato. Em relação ao bife, por exemplo, quando se ouve falar na água que se gasta na agricultura, parece que está a falar-se apenas de legumes, mas na verdade está incluída a água que se gasta na criação de animais para consumo humano, que é a parte da agricultura que gasta muito mais água. Se as pessoas não estiverem informadas da realidade do problema da água e do que podem fazer para o mitigar, como é que pode existir uma consciência cívica para reagir ao mesmo? “, questiona. A água “é essencial à vida”, por isso, insiste, “deveríamos todos zelar por esse bem precioso”. Para inverter a situação no mundo, Lídia considera necessário “tomar medidas adequadas à especificidade de cada local, pois a água não existe de forma uniforme em todo o planeta, muito menos a sua distribuição”. Em Portugal, acrescenta, “há muitas medidas que podem ser adotadas, não apenas quando não está a chover e não apenas no papel, mas contínuas e práticas”. Da parte do cidadão comum, “seria importante ter plena consciência de que a escassez já é real e vai ser cada vez mais grave, não num futuro distante, mas no imediato. Cada um de nós, enquanto consumidor diário de água, pode tentar poupá-la ao máximo, só gastando a água realmente necessária”. E dá um exemplo “muito simples” que é aproveitar a água de lavar os legumes para regar as plantas, já que um dos maiores desperdícios diários generalizados, por parte de qualquer pessoa, são os muitos litros de água gasta enquanto se espera que saia água quente para tomar banho. Essa água, totalmente limpa, “pode facilmente ser recolhida com um recipiente, um balde, por exemplo, e utilizada para vários fins, como lavar o chão, ou usá-la na sanita em vez de descarregar o autoclismo”. Em relação aos banhos, sublinha que “milhões de pessoas gastam milhões de litros de água potável diariamente, e penso que poderia existir um sistema de recolha dessa água para as descargas na sanita”. Entre todas as outras regras já existentes para construção de casas, “poderia existir a obrigatoriedade de instalação de um sistema de reaproveitamento dessa água, e haver um fundo ambiental (os fundos deveriam servir para medidas concretas, com efeitos práticos e eficazes) para apoiar quem quisesse instalar esse sistema na sua casa. Outra regra poderia ser um sistema para recolha da água da chuva que cai no telhado”, aconselha. Para Lídia, “há muitas medidas que deveriam ser adotadas pelas entidades competentes, como evitar que a água se perca ao longo do sistema de distribuição, ou fazer a manutenção de equipamentos públicos, como os chuveiros de praia, por exemplo, que muitas vezes estão avariados e a deitar constantemente água. Também seria muito importante ‘plantar’ água”. Num país que vive muito à base do turismo e quer viver ainda mais, “é necessário ter em conta o exponencial aumento de pessoas no verão, meses em que há e cada vez é mais provável haver seca severa, o que implica um grande aumento do consumo de água”. Para a ativista ambiental, “deveria ser obrigatório os empreendimentos turísticos terem um sistema de poupança e reaproveitamento de água, especialmente os que dispõem de campos de golfe, que têm de ser constantemente regados”. “Há muitas, muitas medidas que podem ser adotadas pois, basicamente, está tudo por fazer, temos vivido como se a água disponível nunca acabasse. O ciclo da água demora muito tempo a completar-se e estamos a consumi-la a uma velocidade vertiginosa, não permitindo que o ciclo se complete em tempo útil para o ser humano e para os outros seres vivos, dos quais a existência do ser humano também depende”, lamenta. Ainda do ponto de vista de Lídia, seja em Portugal, seja no resto do mundo, da parte das entidades competentes, “a medida número um seria não deixar nenhuma das medidas no papel, pois seja qual for a medida, tem de ser posta em prática rapidamente; da parte dos cidadãos, o principal seria não pensarmos que o que fazemos não tem importância, seja de forma negativa, seja de forma positiva, pois somos muitos e se muitos fizermos o mesmo, os resultados são visíveis. Lema: não desperdiçar uma única gota de água”. A ativista ambiental é também uma das embaixadoras da H20FF – Hora de fechar a torneira, iniciativa promovida pela APDA, no Dia Mundial da Água, às 22 horas. Lídia aceitou sê-lo. precisamente para “chamar a atenção e sensibilizar para o grave problema da escassez de água e para o facto de haver coisas que cada um de nós pode fazer com o objetivo de o minimizar”. Habitualmente lida com o lixo marinho, ou seja, água salgada, “mas a água salgada já foi água doce e vai voltar a sê-lo, através da evaporação, está tudo interligado, e sem água não há vida no planeta, pelo menos da forma que a conhecemos”, lamenta. Por isso, a embaixadora não tem dúvidas: a campanha H20FF não poderia ser mais adequada a nível de significado, pois estamos habituados a abrir a torneira e ter água sempre disponível”. Mas, alerta, “não é assim no mundo inteiro e não vai ser assim aqui, nem em qualquer lado do planeta se não mudarmos o nosso comportamento”. E, apesar de ser apenas uma hora por ano, “se não pudermos abrir a torneira dá para nos apercebermos da falta que a água faz (não lavar as mãos, nem os dentes, nem puxar o autoclismo…) e, ao sentir isso na pele, pelo menos algumas pessoas vão ter mais consciência de que é necessário mudar alguns hábitos e que alguns deles nem são assim tão difíceis de mudar”, conclui. Já o presidente da APDA justifica a criação da H20FF, porque alertar e consciencializar para a possibilidade de termos em Portugal um ‘Dia Zero Água nas Torneiras’ não é uma miragem”. “Pode ocorrer”, acrescenta, “devendo todos nós seguir o pensamento de José Saramago no seu notável livro ‘Ensaio Sobre a Cegueira’: ‘Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara’. E, já agora, digo eu: ‘Atua em conformidade e adota comportamentos sustentáveis”.