Água & Ambiente
01/07/2022
Comissão europeia está a elaborar relatório que deverá ser apresentado no segundo semestre do ano. Estados-membros têm posições muito diferentes sobre o tema. Mudança no enquadramento comunitário teria impacto no setor em Portugal
A Comissão Europeia está a ultimar um relatório sobre os efeitos económicos no mercado interno da exclusão do setor da água do âmbito da diretiva relativa aos contratos de concessão. O relatório, cuja elaboração estava prevista na própria diretiva, aprovada em 2014, deverá ser adotado pela Comissão no segundo semestre deste ano e será depois enviado para o Parlamento Europeu e o Conselho, segundo fonte de Bruxelas. Com a divulgação do relatório, será possível saber mais sobre o impacto da decisão tomada em 2014, mas, nesta fase, a Comissão não antecipa o que pode vir a resultar deste processo. Ainda em 2021, foram enviados questionários aos vários Estados-membros da União Europeia para recolher informação sobre a organização do setor da água em cada pais, que será incluída no relatório. As conclusões preliminares deste inquérito foram apresentadas num evento em novembro de 2021, organizado pela Direção-Geral do Mercado Interno, Indústria, Empreededorismo e PME (DG GROW). Apesar da exclusão prevista na diretiva europeia, três Estados-membros -República Checa, Polónia e Roménia – admitiram que, nos seus países, as regras estão a ser aplicadas ao setor da água (ver gráfico), enquanto Bulgária, França e Espanha avançaram que, na transposição da diretiva, incluíram o setor da água, mas apenas parcialmente. Contudo, a maioria dos países, incluindo Portugal, não aplica esta legislação ao setor. Diferentes modelos Os resultados do inquérito evidenciavam ainda a diversa e complexa organização dos serviços de água a nível europeu, envolvendo diferentes modelos de gestão, com maior ou menor participação do setor privado. Países como a Alemanha ou a Áustria têm privilegiado a gestão pública, enquanto outros países, como França ou Portugal, implementaram sistemas mistos, com a participação de empresas privadas na gestão de concessões municipais ainda que a titularidade dos serviços se mantenha pública. De resto, vários países sublinharam, na resposta ao inquérito da Comissão, o seu apoio expresso à exclusão do setor da água do âmbito da diretiva. A Áustria, por exemplo, manifestou que se opunha a “qualquer tentativa de privatizar ou liberalizar o setor da água”, enquanto os Países Baixos argumentaram que, tendo em conta o “desejável controlo democrático de uma necessidade básica”, será “muito indesejável permitir qualquer tipo de concorrência” neste setor. Já em 2014, quando foi discutida a diretiva, a possibilidade de esta vir a abranger o setor da água gerou muito polémica e a Comissão reconheceu, à data, que não tinha sido possível encontrar uma formulação legal consensual entre os Estados-membros. Na altura, a discussão coincidiu com a iniciativa Right2Water, que reivindicava explicitamente que estes serviços ficassem de fora das regras de funcionamento do mercado interno e de qualquer processo de liberalização. Tratou-se da primeira iniciativa de cidadãos europeus – um modelo de participação inovador que permite que um milhão de cidadãos de, pelo menos, um quarto dos Estados–Membros da União Europeia, instem a Comissão Europeia a apresentar propostas jurídicas. Foi assinada por quase 2 milhões de pessoas e teve um impacto direto na decisão do então comissário Michel Barnier, responsável pelo mercado interno, de deixar o setor de fora. A diretiva das concessões foi criada, segundo o próprio diploma, para assegurar um quadro jurídico “equilibrado e flexível”, que garantisse segurança jurídica, “o acesso efetivo e não discriminatório de todos os operadores económicos da União ao mercado”, visando, dessa forma, contribuir para que os cidadãos pudessem beneficiar “de serviços de qualidade ao melhor preço”. A exclusão prevista abrange as concessões de obras e de serviços destinadas a disponibilizar ou explorar redes fixas no domínio da produção, transporte ou distribuição de água potável ou do fornecimento de água potável a essas redes. As concessões de serviços de eliminação ou tratamento de esgotos, assim como projetos de engenharia hidráulica, irrigação ou drenagem (desde que o volume de água potável para abastecimento represente mais de 20% do total de água fornecido) ficaram igualmente cobertos pela exclusão, desde que estejam associados a uma atividade excluída. Europa dividida Oito anos depois, a exclusão do setor da água continua a dividir opiniões entre os vários Estados-membros da União Europeia e também não reúne o consenso de especialistas e profissionais do setor. “O setor da água não devia ser incluído na diretiva das concessões”, defende Michael Getzner, Professor de Finanças Públicas e Economia na Universidade Técnica de Viena (TU Wien), que espera que nada venha a mudar a nível comunitário. Para o académico, que participou no evento da Comissão realizado em novembro, a prestação deste serviço, na maioria dos países, tem sido “assegurada pelos municípios há bastante tempo, de forma eficiente e eficaz” e não deve ser concessionada a privados “na base de ganhos de eficiência hipotéticos”, dado que se trata de um bem “singular”, que ao contrário do que sucede no setor da energia ou das telecomunicações, não pode ser substituído por fontes alternativas. Por outro lado, o académico não considera que as concessões contribuam para reduzir custos da prestação do serviço, salientando que o setor privado paga taxas de juro “muito mais elevadas” no acesso a financiamento e que os acionistas privados esperam “um determinado nível de retorno dos seus investimentos”. Isso significa que “o setor privado teria de ser, pelo menos, 10% mais eficiente do que o setor público antes de haver qualquer beneficio económico” de concessionar os serviços, estima. Na sua perspetiva, quando o abastecimento de água está a cargo dos municípios, “a monitorização e controlo” da qualidade do serviço e dos preços praticados é feita “pelas instituições democráticas” locais e “pelos cidadãos”, que podem comparar o nível do serviço prestado com outros municípios vizinhos. Por outro lado, envolver o setor privado na provisão deste serviço implicaria custos acrescidos de regulação. De resto, para Michael Getzner, esta é, em última análise, uma questão de economia politica, ou seja, de manter o conhecimento e a capacidade de intervenção dos poderes públicos em setores “fundamentais para a economia” local e nacional. “Os municípios têm experiência de muitos anos na gestão de redes de água e vão perder essa capacidade se não assumirem a parte operacional”, diz. “E é muito difícil depois voltar a construir esse sistema”, remata. Setor da água em França Por seu lado, em França, o setor da água foi, desde logo, incluído na transposição da diretiva, por isso, “não houve grandes mudanças”, explica Tristan Mathieu, diretor executivo da federação francesa de operadores privados de serviços de água (FP2E, na sigla original), que também marcou presença no evento organizado pela DG GROW. Aliás, o pais dispõe já de “uma experiência de 25 anos” de participação de operadores privados na gestão deste serviço, existindo, atualmente cerca de 7000 contratos de concessão em vigor, na área da água, entre empresas privadas e municípios. A transposição da diretiva introduziu, contudo, algumas mudanças ao nível da duração dos contratos e das regras de alteração dos mesmos que o dirigente associativo considera positivas. Para Tristan Mathieu, “não há razão” para que o abastecimento de água fique de fora do âmbito da diretiva, até porque o saneamento já está incluído. “A diretiva das concessões não obriga a privatizar o serviço”, argumenta, “só diz que, se se quiser trabalhar com operadores privados, tem de se cumprir regras de concorrência e transparência”, que são comuns à escala europeia. Se o setor da água for incluído na revisão da diretiva, “acho que dará um bom enquadramento para as autoridades públicas que quiserem contratar empresas privadas”, defende. De resto, o diretor executivo da FP2E não tem dúvidas de que os operadores privados trazem maior eficiência à prestação deste serviço. “É assim em França: são mais eficientes na gestão das redes, garantem melhor qualidade de água e são menos dispendiosos”, resume. Um desempenho que resulta de haver uma gestão empresarial focada “num único serviço”. “Temos grandes desafios pela frente”, recorda Tristan Mathieu, devido às alterações climáticas, “e não é boa ideia não mobilizarmos o setor privado” para lhes dar resposta. Na sua perspetiva, o que é fundamental é que haja “transparência e livre concorrência”, para que depois os autarcas tenham “liberdade para decidir”, em função do nível de preço e qualidade de serviço oferecidos. AEPSA atenta ao processo Em Portugal, o setor da água já foi aberto à participação de privados há mais de duas décadas, mas a AEPSA – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, acredita que a inclusão na diretiva seria benéfica para o país. A associação tem estado atenta a este processo e até teve oportunidade de expressar o seu ponto de vista, junto da DG GROW, na sequência da denúncia que apresentou à Comissão Europeia, o ano passado, relativa à violação dos princípios da concorrência no setor da água. “Se todas as concessões estão incluídas na diretiva, que visa essencialmente mecanismos de transparência e de concorrência, porque é que as concessões de água ficaram de fora?”, questiona, desde logo, Eduardo Marques. De resto, o presidente da AEPSA nota que, desde 2014, “houve um incremento significativo das concessões em geral” na Europa, o que “indicia que esta diretiva beneficia os Estados-membros e os cidadãos”. Entre 2016 e 2019, o número de contratos de concessão, abrangendo diferentes setores, lançados anualmente no espaço europeu, cresceu de 736 para 1169, segundo os dados apresentados pela DG GROW. Para Eduardo Marques, com a inclusão na diretiva, “o mercado da água será muito mais transparente e muito mais concorrencial”, vinca. Isso iria “seguramente propiciar um conjunto de novos concursos de concessão e respetivos contratos”, confia, que “iriam beneficiar muito os utilizadores e o pais em geral, porque é reconhecida a eficiência e a qualidade do serviço das concessões privadas”. Atualmente, existem em Portugal 31 concessões municipais de abastecimento de água e saneamento de águas residuais, que abrangem cerca de 20% da população. O presidente da AEPSA identifica outras “vantagens significativas” nesta inclusão: “haveria maior controlo e mais rigor” das ajudas de Estado, “maior agilidade e flexibilidade” para os municípios lançarem concursos, e “maior igualdade de tratamento entre o setor público e privado que atualmente não existe”. Estas foram, de resto, algumas das questões abordadas pela AEPSA na denúncia entregue a Bruxelas, em julho do ano passado. Em causa estão, por exemplo, diferenças previstas na lei relativas à duração atual dos contratos de concessão – 35 anos para concessões privadas e 50 anos para concessões públicas – que têm “muito impacto nas tarifas devido à amortização dos investimentos” ou na carga fiscal aplicável, dado que os consumidores servidos por concessões privadas pagam IVA no saneamento, ao contrário dos que são sentidos em regime de gestão direta pelas câmaras. A AEPSA tem também reivindicado “equidade no acesso a fundos europeus” e o “respeito pelo principio do poluidor-pagador”, que considera ser “sistematicamente” violado “devido à subsidiação do Estado e à subsidiação municipal” destes serviços. Caso a diretiva passasse a incluir o serviço de abastecimento de água, “haveria também uma clarificação do papel da Águas de Portugal no mercado nacional”, confia ainda Eduardo Marques, porque o lançamento de “parcerias público-públicas sem concurso deixaria de ser possível”. No entanto, se a mudança na diretiva contribuiria para estes objetivos, o presidente da AEPSA recorda que os princípios da concorrência e da transparência “já estão no tratado europeu”.