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A água que se perde na rede de distribuição do Algarve dá para regar 40 campos de golfe As barragens ainda têm água suficiente para assegurar o Verão turístico, mas o resto do ano é uma incógnita. O principal aquífero da região – Querença-Silves – tem nota “medíocre”
O turismo, considerado o “tractor da economia” do Algarve, pretende reutilizar as águas residuais para regar campos de golfe e espaços públicos. A medida, várias vezes anunciada, é pouco mais do que uma “gota de água” do volume que poderia ser reaproveitado: apenas está previsto, até final do ano, utilizar 8% dos efluentes tratados. Enquanto isso, a água potável que se perde nas fugas das redes de distribuição dava para regar todos os golfes que existem na região: 40 campos, que consomem cerca 13 milhões de metros cúbicos/ano. Visto do céu, o Algarve litoral apresenta-se como se fosse um quadro pintado de azul e verde e salpicado pelo branco dos hotéis e empreendimentos a acotovelarem-se junto ao mar. O pior é o que não se observa num primeiro olhar e é determinante para a sustentabilidade do território. Os aquíferos estão a aproximar-se da linha vermelha e não há soluções no curto prazo, a não ser racionalizar os recursos disponíveis. O Plano de Gestão da Região Hidrográfica das bacias do Algarve, em discussão pública até Outubro, revela que os recursos hídricos estão por um fio. Ao mesmo tempo, não param de aumentar as necessidades de consumo, tanto nos campos como na cidade. A Águas do Algarve garante, no entanto, que os consumos domésticos estão assegurados até final do ano. A partir daí, o horizonte está carregado de nuvens de incerteza. Mas se só agora o Governo, no âmbito das medidas contra a seca, está a impor restrições ao sector turístico, outros já as sentem na pele há muito tempo. “Nós, os agricultores, sabemos o que custa ver morrer uma árvore à sede”, diz José Oliveira, presidente do agrupamento de citricultores Algarve Orange. O sector agrícola é responsável por cerca de dois terços dos consumos (67%). “Utilizamos a água para produzir alimentos, não é para encher piscinas”, atira o agricultor. Observa que o turismo é, de facto, “factor de desenvolvimento económico, desde que não se perca a noção dos equilíbrios”. Quando à necessidade de restringir ou cortar água, queixa-se, “o agricultor é o primeiro a ser penalizado”. Quem sai da orla marítima e sobe à serra, tropeça numa desertificação que se alastra como uma mancha de óleo. A maioria das ribeiras secou, o peixe morreu, os matos, ressequidos, trazem à memória os cíclicos incêndios da serra do Caldeirão. De acordo com os dados divulgados pelo Serviço Nacional de Informação de Recursos Hidráulicos (SNIRH), todas as albufeiras das barragens algarvias se encontram com menos água do que tinham a 1 de Outubro de 2021, o início do ano hidrológico. O decréscimo é superior a 51 milhões metros cúbicos, número que deverá triplicar no final do Verão. O director da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade do Algarve (Ualg), Carlos Guerrero, observa: “A sustentabilidade do território obriga a uma mudança de paradigma.” O golfe dos Palmares, exemplifica, “adoptou medidas restritivas, deixou de regar os fairways [corredores do centro do campo]”. Teve de o fazer, já que a barragem da Bravura, que regava este campo e os pomares de citrinos da zona de Lagoa e Silves, passou a fornecer água exclusivamente para uso doméstico. A zona do Barlavento (Portimão-Lagos) encontra-se em “escassez extrema”. As barragens fornecem cerca de 50% água consumida na região, a outra metade é garantida por furos artesianos, alimentados pelos 25 aquíferos, localizados predominantemente no barrocal. Mas a principal reserva de água subterrânea da região, o aquífero Querença-Silves, encontra-se em situação crítica. A Administração da Região Hidrográfica (ARH) atribuiu-lhe uma classificação global de “medíocre” em qualidade e quantidade de água disponível. Campinas de Faro, Almancil ou São João da Venda são outros exemplos do “mau ou medíocre” estado em que se encontra a água no subsolo. Intrusão salina Já bem perto da orla marítima, o lençol freático onde se situam os empreendimentos turísticos de Vale do Lobo e Quinta do Lago é reflexo de uma situação que se agrava ano após ano. Os furos que abastecem piscinas, pomares e jardins acusam os efeitos da intrusão salina. “A salinização chega ao Quinta Shopping [a mais de três quilómetros do mar]”, diz o presidente da Infraquinta. Por isso, o administrador da empresa que gere as infra-estruturas públicas do empreendimento, Pedro Pimpão, adianta que utilizam “36% das águas residuais para regar jardins e outros espaços públicos”. A meta traçada, enfatiza, é atingir os 81%. No mesmo sentido, Vilamoura anunciou que vai reutilizar 86% de água não potável nas regas dos espaços públicos do resort. O Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) dispõe de uma verba de 200 milhões para criar condições para que a região se torne “mais resiliente” às alterações climáticas. De entre as obras previstas, encontra-se a melhoria da rede de distribuição, construção de uma central de dessalinização e o transvase do rio do Guadiana, no Pomarão. “Os investimentos, agora anunciados, já deviam estar feitos”, diz o administrador do grupo dos hotéis Pestana, Pedro Lopes, sublinhando que os privados vão à frente do público: “Temos praticamente pronta a rede para receber áreas residuais da Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) da Boavista (Lagoa) para regar os golfes do Gramacho e Vale da Pinta.” O problema, explica, é que foram “detectados elevados teores de salinização nas águas residuais, que terão de ser corrigidos”. A operação, disse, ficará a cargo das Águas do Algarve, a a empresa responsável pela distribuição em alta. “É preocupante o Algarve estar tão dependente do turismo por não existirem alternativas”, reconhece Pedro Lopes, preconizando a diversificação das fontes de abastecimento público. “Devia ser construída, não uma, mas duas centrais dessalinizadoras.” Os hotéis Pestana, há dez anos, construíram uma dessalinisadora no Alvor, encontrando-se desactivada há quatro anos. O presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), José Apolinário, por seu lado, afirma: “O turismo é o tractor da economia. Tem é de puxar mais pelos outros sectores.” Por isso, defendeu recentemente, na Assembleia Municipal de Loulé, a necessidade de “acelerar o processo” da reutilização das águas das ETAR. O objectivo, definiu, é atingir os 8% de aproveitamento dos efluentes tratados até final do ano e duplicar em 2023. A Comunidade Intermunicipal do Algarve – Amal, na semana passada, veio propor o “encerramento das piscinas municipais públicas durante Agosto”. A medida é pouco mais do que simbólica. Nesse período, as câmaras do litoral mandam fechar esses espaços de lazer para fazer manutenção, especialmente as piscinas cobertas. Ao mesmo tempo, a Amal recomendou “cessar a rega dos espaços públicos relvados com reconversão por espécies autóctones”, mas a sugestão não foi acatada pela generalidade das câmaras. O professor Carlos Guerrero, que é especialista em campos de golfe, considera que as alterações climáticas vão obrigar a repensar a concepção de construção dos campos e sustentabilidade do território: “Houve grandes progressos na eficiência dos sistemas de rega, mas é provável que, em certas áreas do campo, a relva seja substituída por plantas endémicas, mais resistentes à seca.” Mas há desperdícios que, raramente, são vistos. As fugas nas redes de distribuição, calculadas em 30% (percentagem idêntica à média nacional), disse, “equivalem aos consumos dos 40 campos de golfe existentes na região, cerca de 13 milhões de metros cúbicos”. —– ETAR. A miragem da reutilização dos efluentes Idálio Revez A zona do barrocal algarvio não produz apenas alfarrobas. É nessa faixa do território que se localizam as maiores reservas de água no subsolo, desde logo o aquífero Querença-Silves, um rio subterrâneo que percorre toda a zona central da beira-serra. A bacia hidrográfica da região tem 81 ribeiras. Uma riqueza que está agora sob ameaça neste cenário de seca. Face à crescente escassez, viram-se as apostas para a possibilidade de usar os efluentes para regar campos de golfe e fazer agricultura e esta é uma das medidas previstas no PRR. Mas a concretização destes projectos esbarra na burocracia, por um lado, ou na distância entre as ETAR do litoral e as necessidades de rega nos campos cultivados no interior da região. Regar golfes? “Sim, naturalmente, mas porque não alfarrobeiras?”, questiona Manuel Costa, doutorado em Ciências Agro-Ambientais. A experiência no terreno, efectuada em Salir (Loulé), num pomar de alfarrobeiras com 16 hectares, resultou em pleno: “Em vez dos efluentes, ricos em azoto, fósforo e potássio, serem lançados na ribeira, foram alimentar as árvores.” O obstáculo que encontrou foram os empecilhos burocráticos: “Levei três anos a pedir parecer a 13 entidades diferentes para obter o licenciamento.” O crescimento da região, em grande medida, fez-se em função dos interesses imobiliários. Primeiro, construíram-se os hotéis e apart-hotéis e só anos depois – quando os ingleses se queixaram das salmonelas encontradas na água do mar – é que houve investimento em ETAR da última geração. Com esses equipamentos, começou-se a discutir o reaproveitamento das águas residuais para rega de golfes e jardins. Decorridas quase duas décadas, apenas o campo de golfe dos Salgados (Albufeira) é regado de forma integral com as águas residuais tratadas e, mais recentemente, o campo de São Lourenço na Quinta do Lago. No interior da região, a aridez do clima vai deixando marcas de destruição da biodiversidade. “Fui visitar a fonte da Benémola [nascente do aquífero Querença-Silves] e esta está seca, o peixe desapareceu”, remata José Oliveira, lembrando que a água das ETAR não chega aos locais onde se cultivam os campos. “Reutilizar as águas residuais na agricultura só quando existir uma rede de distribuição”, alerta.