Água & Ambiente
01/05/2022
Justificação apresentada no documento explicativo dos investimentos a realizar no âmbito do plano de recuperação e resiliência é de que não existe concorrência no setor do abastecimento de água e saneamento. AEPSA já está a analisar a questão “de forma aprofundada”. Falta de equidade na distribuição de fundos comunitários prejudica 20% dos consumidores cujo serviço é prestado por concessões, alerta a associação.
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destina 390 milhões de euros para melhorar a gestão hídrica no território nacional, tendo elegido três áreas de intervenção – as regiões do Algarve e do Alentejo e o arquipélago da Madeira – devido ao forte stress hídrico a que estas estão sujeitas e identificado um conjunto de investimentos públicos para dar resposta ao problema. A justificação para a atribuição destes fundos não ser considerada uma ajuda de Estado, à luz da legislação comunitária, surge no documento explicativo do PRR dos investimentos a realizar: “o setor em baixa e em alta associado ao abastecimento e tratamento da água para consumo humano e ao tratamento de águas residuais em Portugal está fechado à concorrência”, pode ler-se. Segundo o documento, isto verifica-se porque “tanto no quadro do acesso ao mercado para efeitos de prestação do serviço”, realçando-se que “os serviços são na sua maioria prestados por entidades públicas”, como “no domínio da concorrência entre componentes dos sistemas em alta e em baixa: uma vez que os sistemas em alta em baixa não concorrem entre si, mas complementam-se”. Matéria Complexa O presidente da AEPSA – Associação de Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente considera este argumento “muito estranho”, tendo presente que “a concorrência está definida na lei da água” e que, há várias décadas que “há concursos de concessão, concursos de [prestação de] serviços, concursos de parcerias público-privadas” neste setor, enumera. “No meu entendimento como engenheiro e não como jurista”, nota Eduardo Marques, “essa afirmação não está correta”. No entanto, o presidente da AEPSA admite que esta é “uma matéria complexa, que tem de ser muito bem analisada” e que, por isso, o tema “está neste momento a ser estudado” peta associação “de uma forma aprofundada”. O relatório deverá ficar concluído “dentro de um a dois meses”, adianta. Esta questão tinha sido já levantada por Pedro Perdigão, num artigo de opinião publicado na última edição do jornal Água&Ambiente, no qual reagia com “estupefação” á justificação apresentada de que não existia concorrência neste setor. O CEO DA Indaqua concluía, no seu texto que, invalidando-se este argumento, os apoios concedidos “não são mais do que verdadeiras ajudas de Estado, que não só afastam a concorrência, como continuam a beneficiar entidades menos eficazes e menos eficientes”. Contactados pelo Água&Ambiente, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática e a Autoridade da Concorrência não responderam em tempo útil às questões enviadas sobre este tema. Entretanto, a Comissão Europeia tem na sua agenda uma análise do funcionamento global da diretiva comunitária relativa à adjudicação de contratos de concessão e entre as questões que estão a ser aferidas inclui-se o impacto económico no mercado interno europeu da exclusão do setor da água do âmbito coberto por esta diretiva. O tema esteve em foco numa consulta a stakeholders, promovida peia Direção-Geral de Mercado Interno, Indústria, Empreendedonsmo e PME, no passado mês de novembro. Se atualmente, as concessões municipais de água e saneamento não estão abrangidas por esta diretiva, isso pode mudar num futuro próximo. Para Eduardo Marques, isso seria “extremamente importante”, porque, nesse caso, o tema das ajudas de Estado “terá de ser abordado de forma completamente diferente”, argumenta. Falta de equidade preocupa empresas Para a AEPSA, as prioridades definidas no PRR para o setor da água evidenciam uma tendência mais ampla: “Tem havido ao longo dos anos uma total falta de equidade na distribuição dos fundos” comunitários, observa Eduardo Marques. Feitas as contas, em média, os subsídios comunitários atribuídos por pessoa são sete vezes superiores quando esta é servida por entidades públicas do que por entidades privadas, garante. Estes subsídios “não são precisos para o funcionamento normal da concessão”, porque os investimentos “já estão previstos nos modelos económicos”, frisa o presidente da associação, mas o acesso a estes fundos por parte das concessionárias privadas permitiria “refazer os modelos e baixar tarifas”. “Quando há falta de equidade de atribuição de fundos ao setor privado, isto apenas prejudica os munícipes desses municípios que têm concessões privadas e não as empresas”, salienta. Atualmente, existem 31 concessões municipais de abastecimento de água e saneamento de águas residuais, de acordo com o último relatório anual publicado pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos. Estas entidades prestam serviços de água a cerca de 20% da população portuguesa, segundo a AEPSA. Por outro lado, o presidente da AEPSA realça que o montante previsto no PRR para apoiar o setor da água – 390 milhões – é diminuto face à sua relevância nacional. “São verbas reduzidas para um setor tão importante como é a distribuição da água”, aponta, Ainda assim, as empresas do setor estão atentas a outras oportunidades de financiamento “transversais”, inscritas no plano, que não estão alocadas a setores específicos. “Há outro tipo de linhas [de financiamento] do PRR que poderão ser utilizadas”, nomeadamente os apoios destinados à descarbonização e à digitalização, ilustra. Esta não é a primeira vez que a AEPSA alerta para possíveis ajudas de Estado no setor do abastecimento de água e saneamento ou para a falta de equidade no acesso a fundos comunitários. Estas preocupações estavam já patentes na denúncia enviada á Comissão Europeia, no passado mês de julho. Estas reivindicações da associação estão ainda a ser analisadas por Bruxelas. “É um processo lento”, admite o presidente da AEPSA.