Visão Online
Investigação homologada pelo ministro do Ambiente, a que a VISÃO teve acesso, encontrou várias irregularidades na Electrão, como ajustes diretos a uma empresa subsidiária e negócios sem contrato, o que tem como consequência legal “a cassação imediata da licença”. A Inspeção-Geral do Ambiente acusa ainda a Electrão de usar as receitas das taxas ambientais pagas pelos consumidores para “gastos de estrutura”, em vez de pagar o tratamento dos resíduos
Situações passíveis de “contraordenação ambiental grave”, falta de transparência e de rigor, ausência de auditorias às empresas com que trabalha, pagamentos quase sempre atrasados, constituição irregular de uma empresa (a quem depois atribui a prestação de serviços sem concurso, prejudicando as concorrentes no mercado), receitas usadas para pagar “estrutura” em vez de custos de tratamento, como está obrigada. E, finalmente, a prestação de serviços com uma empresa sem celebração de contrato, o que tem “como consequência a cassação imediata da licença”, como previsto na lei.
Estas são algumas das irregularidades identificadas pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), relativa à atividade, em 2018 e 2019, da Electrão – a maior entidade gestora do País de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (cerca de dois terços do mercado), a quem o Estado atribuiu uma licença para gerir a recolha e tratamento de resíduos. O relatório foi enviado a 3 de novembro de 2020 à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e à Direção Geral das Atividades Económicas (DGAE), além de à própria Electrão, para “exercício de contraditório”. A Electrão não respondeu. Um ano e dois meses mais tarde, a 13 de janeiro deste ano, o documento foi homologado pelo ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, depois de submetido pela secretária de Estado do Ambiente, Inês dos Santos Costa.
A auditoria da IGAMAOT resultou em 28 conclusões, algumas das quais consideradas muito graves. Uma das primeiras apontadas na lista é a “criação de uma sociedade comercial (tipo Lda.) com recurso a meios financeiros oriundos das prestações financeiras” (as receitas provenientes do Ecovalor, a taxa ambiental que os consumidores pagam quando compram um produto, para garantir a sua recolha e tratamento no fim de vida útil do prodtuo). A IGAMAOT recomenda “equacionar a proibição total, nas licenças em vigor e nas a emitir futuramente, de constituição de sociedades comerciais pelas Entidades Gestoras”.
Um dos problemas da constituição dessa empresa (chamada Electrão, Lda) fica claro na conclusão seguinte: “A celebração de contrato de prestação de serviços com uma entidade detida a 100% pela Entidade Gestora, sem a realização de concurso, potencia a violação do direito da concorrência relativamente a outras empresas que operam no mercado.” Ou seja, a Electrão criou uma empresa (com cinco milhões de euros de capital social, provenientes das taxas ambientais que recebe) a quem passou a atribuir diretamente, sem concurso, contratos de recolha e armazenamento de resíduos, prejudicando outras empresas do setor. Devido a esta irregularidade, a IGAMAOT recomenda que o relatório seja enviado à Autoridade da Concorrência.
‘Cassação imediata da licença’
Várias conclusões da auditoria à Electrão evidenciam falta de transparência da entidade gestora: ausência de informação atualizada sobre os resultados da sua atividade; desrespeito dos prazos legais para divulgação dos relatórios ambientais anuais, informação “escondida” no site (“não é intuitivo, sendo difícil encontrar a informação relevante, nomeadamente no que aos procedimentos concursais respeita”); modelos de contratos que não estão, de todo, no site, como era suposto; faturas de projetos em que não se sabe a que fluxo de resíduo pertence (a Electrão gere também resíduos de embalagens, além de equipamentos elétricos e eletrónicos), e resultados de concursos que ficaram por publicar.
A IGAMAOT acusa também a Electrão de pagar tarde aos seus fornecedores (“228 das 270 faturas analisadas foram pagas após a data limite de pagamento”) e de ter visto uma fatura de um projeto seu, o Quartel Electrão (recolha de resíduos em quartéis de bombeiros), ser liquidada pela empresa Electrão, Lda, “sendo posteriormente alvo de acerto de contas entre a Entidade Gestora e sua subsidiária, embora tal não se encontre previsto no contrato de prestação de serviços celebrado”.
O relatório acusa ainda a Electrão de usar as taxas ambientais que lhe são pagas para pagar salários e outros gastos internos, em vez de se preocupar em aplicá-los no tratamento de resíduos, como devia. “As receitas obtidas pela Entidade Gestora com o Ecovalor têm servido basicamente para suportar os seus gastos de estrutura e não os custos diretos de tratamento dos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos.” Recomenda-se, a esse propósito, que “garanta o equilíbrio da aplicação das receitas obtidas com o Ecovalor para os fins previstos na licença que lhe foi atribuída.”
Outro ponto importante, e que tem estado na origem de muitas críticas de ambientalistas e operadores do setor dos resíduos, é a ausência quase total de controlo das empresas contratadas para tratar os resíduos. A Electrão em particular tem sido acusada de não assegurar que o tratamento é efetivamente feito. Aliás, uma dessas empresas, que venceu o último concurso para tratar de equipamentos de frio, a espanhola Recilec, está a ser indiciada por fraude e crimes ambientais – durante anos, terá triturado ilegalmente toneladas de frigoríficos, sem qualquer tratamento (libertando assim enormes quantidades de gases nocivos), numa burla estimada em €16 milhões. A IGAMAOT confirma essa falta de controlo: em 2018, apenas 5% foi alvo de auditoria ou verificação, número que baixou para 4% em 2019. O relatório recomenda o reforço das “auditorias/verificações efetuadas no sentido de abrangerem todos os intervenientes do sistema”. Neste assunto, a secretária de Estado do Ambiente discorda, numa nota final a acompanhar a homologação do relatório, dizendo que as auditorias devem abranger todas as tipologias de resíduos, não todos os intervenientes, posição que é secundada pelo ministro.
As duas últimas conclusões do documento são as mais sérias. “Não foi celebrado contrato com o operador de gestão de resíduos SISAV, o que tem como consequência a cassação imediata da licença, cfr. n.º 7 do despacho n.º 5257/2018.” O despacho em causa estipula exatamente isso: a entidade gestora é obrigada a celebrar contratos, e o incumprimento determina “a cassação imediata da licença”. Estranhamente, apesar de o despacho ser muito claro quanto às consequências, a IGAMAOT não pede que se retire a licença à Electrão. Em vez disso, recomenda que “de futuro garanta a celebração de contratos com todos os intervenientes”. Finalmente, o relatório indica a “existência de situações passíveis, em abstrato, de contraordenação ambiental grave, por violação das condições da licença”.
Para Rui Berkemeier, especialista em resíduos da associação Zero, este relatório é tão “preocupante” que “até é difícil saber o que selecionar”. “É uma vergonha. Há muitas questões nebulosas, como as ligadas à empresa criada pela Electrão. Outro dos grandes problemas é a completa falta de auditoria a empresas. É como se eu contratasse um canalizador e não me desse ao trabalho de ver se o trabalho ficou feito.” Berkemeier sublinha ainda que não compreende como é que a licença da Electrão não lhe foi retirada, apesar de a IGAMAOT dizer que há razões para o fazer imediatamente. Pelo contrário, a licença foi prorrogada já depois de se saber o resultado desta auditoria. Acima de tudo, continua, o documento “evidencia que a APA [Agência Portuguesa do Ambiente] não está a fazer o seu papel”. “Já não devíamos estar a discutir as irregularidades das entidades gestoras, mas sim como a APA e o Ministério do Ambiente não conseguem controlar este setor.”