Visão Online
A empresa Recilec é apontada como responsável por um gigantesco crime ambiental – milhares de frigoríficos terão sido triturados ilegalmente, sem tratamento, libertando para a atmosfera grandes quantidades de gases fluorados, com um efeito de estufa 23 mil vezes superior ao dióxido de carbono. Electrão diz que não vê razões para deixar de confiar na empresa espanhola, a quem entregou o tratamento de 75% dos equipamentos de frio, computadores e telemóveis recolhidos Mais de 4 mil toneladas de frigoríficos e arcas congeladoras vão ser entregues pela Electrão à Recilec, SA, uma empresa espanhola de reciclagem apanhada recentemente numa investigação policial sobre tráfego de resíduos. Em declarações à VISÃO, Pedro Nazareth, diretor-geral da Electrão, a maior entidade gestora de resíduos elétricos e eletrónicos em Portugal, defende a opção, dizendo que não competia à entidade gestora “alterar ou adulterar as regras” do concurso “por conta de acusações, insinuações ou notícias de jornais”. Não se trata, no entanto, de simples insinuações: cinco diretores da Recilec foram detidos no verão de 2020 e acusados pelo Ministério Público espanhol de sete delitos, incluindo fraude – num valor estimado de €16 milhões – e crimes ambientais. Segundo a acusação, o modus operandi era simples: a Recilec ganhava concursos para tratar dos equipamentos apresentando propostas de valor muito mais baixo do que os concorrentes; mas só conseguia fazer esses preços porque, em vez de separar os resíduos e os gases perigosos (um processo caro e moroso), como manda a lei, se limitava a triturar os frigoríficos, dissimuladamente, de noite. Os gases soltavam-se dos aparelhos, sem qualquer controlo, e os resíduos eram depois vendidos a sucatas. Os equipamentos de frio da Recilec eram triturados de noite, para não levantar suspeitas. Foto da Guardia Civil espanhola O escândalo ambiental foi descoberto por uma investigação no âmbito do projeto TECUM, que junta várias polícias internacionais, incluindo a Europol. Os crimes terão sido cometidos ao longo de anos, provocando a libertação de uma quantidade substancial de gases fluorados, que têm um enorme impacto nas alterações climáticas, 23 mil vezes mais potentes do que o dióxido de carbono e com um tempo de vida na atmosfera na ordem das centenas de anos. Os resultados da investigação à firma espanhola levaram a Junta Autónoma da Andaluzia a vender a sua participação de 25% na empresa. Mas os problemas legais não a impediram de concorrer ao concurso da Electrão para tratar dos equipamentos de frio que esta entidade recolherá em 2022. E venceu, mais uma vez apresentando preços de tratamento abaixo da concorrência: €75 por tonelada, 13,5% abaixo dos €85 da segunda classificada, a também espanhola Induraees. Significa isto que a Recilec vai tratar 4 280 toneladas de frigoríficos e arcas congeladoras (75% do total) e a Induraees, 1 427 toneladas (os restantes 25%). Os preços baixos, porém, podem subir a qualquer momento. Uma cláusula no contrato – que vale para todo o ano de 2022 – permite que a Recilec reveja os preços a cada dois meses, caso os valores do plástico e do metal no mercado internacional variem mais de 10%. “Temos dúvidas de que o tratamento seja feito” O diretor-geral da Electrão garante que não havia justificação para deixar a Recilec de fora, sublinhando que a empresa foi alvo de uma “profunda restruturação” e está a ser escrutinada pelas “entidades de supervisão” espanholas. “O concurso é aberto (não funciona por convite) a todas as empresas licenciadas. O caderno de encargos é público e publicado no site do Electrão. (…) A empresa em causa cumpre todos os critérios internacionalmente estabelecidos e encontra-se devidamente licenciada pelas entidades ambientais competentes”, respondeu Pedro Nazareth, por escrito, à VISÃO. A Electrão informou a Recilec que havia ganho o concurso por email, datado de 1 de dezembro de 2021. O gestor acrescenta que “o desempenho ambiental desse reciclador foi avaliado como o dos demais recicladores que apresentaram proposta no concurso”. “É um reciclador que historicamente tem prestado serviços de reciclagem a entidades congéneres do Electrão em Espanha, com quem partilhamos empresas produtoras associadas comuns.” Pelo menos parte desse histórico, porém, está manchado. O jornal ABC Andalucía reporta que, só com duas congéneres da Electrão no país vizinho, a ERP Espanha e a Ecotic, a fraude da Recilec em 2016 e 2017 ascende a €3,2 milhões. Pedro Nazareth reforça, porém, que tem “toda a confiança na qualidade deste reciclador, sem prejuízo do trabalho de controlo e auditoria que anualmente fazemos ao serviço de reciclagem dos operadores com quem contratamos.” À VISÃO, operadores de gestão de resíduos asseguram que as auditorias são pouco frequentes e visam, na sua maioria, questões burocráticas, sendo raramente escrutinados os critérios ambientais. Rui Berkemeier, especialista de resíduos da associação Zero, diz-se preocupado com “a qualidade do tratamento dado aos resíduos elétricos e eletrónicos” e recorda maus exemplos anteriores, como o da Write Up, em Canas de Senhorim : as entidades gestoras portuguesas encaminharam para essa empresa 1 600 toneladas de resíduos perigosos, sem nunca verificarem se os resíduos eram tratados – e efetivamente não foram, acabando por se tornar um problema grave que teve de ser resolvido pelas autoridades portuguesas, depois de a empresa em causa abrir falência. “Era um operador que ganhava os concursos das entidades gestoras e criou um passivo ambiental brutal”, sustenta Rui Berkemeier. “À conta dos preços baixos que têm resultado dos concursos – porque o fator preço, e não a qualidade do serviço, continua a ser determinante -, temos dúvidas de que o tratamento seja feito da melhor forma. A Zero tem tentando obter garantias sobre a qualidade do serviço junto das entidades gestoras e da Agência Portuguesa do Ambiente [APA], mas sem sucesso.” Mesmo depois de deliberações a seu favor por parte da CADA (Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos), a associação continua sem ter provas da descontaminação e do tratamento de 18 mil toneladas de resíduos de destino duvidoso que a APA incluiu nas estatísticas de 2018 como tendo sido reciclados. “Estamos longíssimo das metas nacionais de reciclar 65% dos resíduos elétricos e eletrónicos: oficialmente, andamos à volta dos 30%, Mas, na verdade, não há evidências que mesmo essa quantidade seja tratada.”, lamenta Rui Berkemeier, que fez entretanto uma queixa à Provedoria de Justiça. Vítima? O consumidor A Associação das Empresas Portuguesas do Sector do Ambiente (AEPSA), entretanto, denunciou a Electrão à Autoridade da Concorrência, por considerar que os concursos que têm sido ganhos por empresas espanholas não respeitam a legalidade, violando os “princípios de transparência, igualdade e concorrência”, lê-se no comunicado da associação, enviado esta quinta-feira, 27. Esta ação segue-se ao pedido de anulação de quatro concursos de resíduos elétricos e eletrónicos, em agosto de 2021. “Previsivelmente, estes resíduos estarão a ser desviados para destinos inadequados”, acrescenta a nota da AEPSA. Pedro Nazareth, da Electrão, diz lamentar “o nível de beligerância e litigância dos operadores portugueses com as suas contrapartes espanholas e mesmo com as entidades gestoras”. “Preferimos não nos envolver nem tomar partido em ataques de reputação entre recicladores portugueses e espanhóis. Entendemos ser um efeito pouco saudável da já limitada concorrência económica que existe neste setor de actividade, da qual resultou vencedor os recicladores espanhóis por falta de comparência dos recicladores nacionais, que naturalmente lamentamos. Reforçamos a ideia anterior: a avaliação de desempenho ambiental deste operador [a espanhola Recilec] oferece as garantias que a reciclagem irá respeitar um elevado padrão. “ A “falta de comparência” das empresas portuguesas nos concursos da Electrão tem uma explicação, diz À VISÃO Eduardo Marques, presidente da AEPSA. “Os operadores de gestão de resíduos associados da AEPSA não se sentiram de todo confortáveis em participar em concursos que, pese embora fossem vitais para a sua sobrevivência empresarial, não cumpriam as exigências ambientais e concursais previstas na legislação nacional e europeia sobre gestão de resíduos e contratação pública.” A alegada violação das regras dos concursos levou a AEPSA a interpor ações judiciais, “que se encontram pendentes, tendo aliás, a Electrão posteriormente partilhado e assumido este entendimento, uma vez que procedeu à anulação de concursos anteriormente por si lançados”, continua Eduardo Marques. Pedro Nazareth, da Electrão tem outro entendimento: “Consideramos relevante informar que a AEPSA (associação que representa os interesses dos recicladores portugueses) moveu e perdeu recentemente um processo contra o Electrão a propósito dos concursos que determinaram a seleção deste e de outros recicladores espanhóis.” Finalmente, em relação à vitória da Recilec, com os seus problemas judiciais, no concurso da Electrão, o presidente da AEPSA diz que as regras do concurso deviam “obrigar à apresentação de uma declaração das empresas concorrentes que não têm processos de incumprimento”, permitindo “uma seleção de propostas mais eficaz e orientar para a seleção de operadores de gestão de resíduos cumpridores da lei.” A Electrão é a maior entidade gestora de resíduos em Portugal, tendo cerca de dois terços do mercado, através de uma licença dada pelo Estado. Do seu conselho de administração fazem parte empresas como a Samsung, a Daikin, a Signify e a General Electric Healthcare. As empresas integram ou associam-se às entidades gestoras de resíduos ao abrigo da Responsabilidade Alargada do Produtor, um regime legal que obriga os produtores a responsabilizarem-se pelos equipamentos no fim do ciclo de vida do produto. Os custos do tratamento dos resíduos são imputados aos consumidores, através da taxa que pagam ao comprarem um produto – o chamado ecovalor. No caso de burlas como a da Recilec, isto significa que grande parte das receitas desse “imposto verde” acabaram, de modo fraudulento, nas mãos da empresa de resíduos, que recebia o dinheiro e, como apenas triturava os equipamentos e vendia a sucata, não tinha gastos com o tratamento dos resíduos. Os milhões de euros da fraude da empresa espanhola foram, assim, subtraídos aos consumidores portugueses, que pagaram um serviço de reciclagem que não foi feito.