Água & Ambiente
01/09/2021
Os operadores privados do setor da água recorreram a Bruxelas para denunciarem a falta de concorrência no setor. Mas não são só os privados que reclamam maior igualdade de oportunidades. O ministério do ambiente não comenta a denúncia apresentada, mas adianta esclarecimentos sobre algumas decisões recentes
A questão já vem de trás, mas várias decisões recentes fizeram transbordar o copo e levaram as empresas privadas do setor da água a recorrer a Bruxelas para tentar equilibrar a balança de oportunidades no setor da água. Em julho, a AEPSA -Associação de Empresas Portuguesas do Setor do ambiente apresentou uma denúncia, na Comissão Europeia, por considerar que o Estado está “a violar regras da concorrência”, ao mesmo tempo que “subsidia entidades públicas ineficientes com ajudas de Estado”.
Caso seja acolhida favoravelmente pelas entidades europeias, a denúncia pode, no limite, até conduzir à suspensão da atribuição de fundos comunitários no setor da água, como já sucedeu, no passado, com outras queixas, reconhece a associação. “A Comissão Europeia, se o entender, pode suspender a aplicação desses fundos”, admitiu o jurista Paulo Sande, durante a conferência de imprensa, realizada em julho. Em causa está o facto de a existência de “uma política de tarifas que preveja incentivos adequados para uma utilização mais eficaz da água pelos consumidores” ser uma das condicionalidades ex ante previstas pela legislação da União Europeia para a atribuição dos fundos FEDER e de Coesão, esclareceu a AEPSA, em resposta ao Água&ambiente. Isto significa que, “em princípio, esta medida extrema não se aplicará ao PRR” [Programa de Recuperação e Resiliência], acrescenta a associação, “não há precedentes, por se tratar de um programa novo”, também não há certezas. Uma eventual suspensão de fundos é, contudo, “o cenário que menos interessa a todos”, sublinha Eduardo Marques, presidente da AEPSA. A decisão será da Comissão, que terá ainda de analisar a denúncia, cuja complexidade faz prever um processo longo.
Uma denúncia abrangente
Ao invés de se focar num aspeto específico da legislação ou numa decisão recente, a APESA optou por avançar com uma denúncia abrangente, na qual sublinha um conjunto diverso de medidas e decisões que, segundo a associação, “não estão de acordo com as normas gerais da concorrência e do Direito Europeu”, e que afetam negativamente “a sustentabilidade ambiental e financeira do setor”, realça Eduardo Marques.
Entre as questões levantadas pela AEP-SA para fundamentar a denúncia está a atribuição do que consideram ser “ajudas de Estado ilegítimas” a entidades públicas. O exemplo citado é a transferência de 50 milhões de euros, por via do Fundo Ambiental, para a Aguas do Norte, prevista no Decreto-Lei 16/2021, que veio rever o enquadramento legislativo da reutilização de água. A AEPSA recorda que não é ilegal atribuir ajudas de Estado, mas que elas têm de ser devidamente reportadas e justificadas. “Porque é que se dá um subsídio [à Águas do Norte] e as outras 300 e tal entidades do país, que podem também ter problemas, não são contempladas?”, questiona Eduardo Marques. Neste capítulo, a associação considera também que a subsidiação das tarifas através dos orçamentos municipais, para reequilibrar as contas de entidades gestoras em baixa que não recuperam custos com a prestação do serviço também configura um auxílio de Estado não notificado. De resto, a prática de tarifas insuficientes para assegurar a cobertura de custos por parte de entidades em baixa é outro dos pontos incluídos na denúncia da AEPSA, mas, neste caso, fundamentada na violação do princípio do consumidor-pagador. O Decreto-Lei 16/2021 veio, também, criar facilidades adicionais no acesso dos sistemas multimunicipais, geridos pelo grupo Águas de Portugal (AdP), a atividades como a reutilização de água ou a gestão de lamas.
Para a AEPSA, esta é apenas mais uma etapa na tendência de “desenvolvimento desmesurado” do grupo AdP “que intervém em condições privilegiadas” em todas as fases da cadeia de valor da água – outro ponto da denúncia enviada a Bruxelas. “Estão sistematicamente a haver novas atividades que ficam na esfera da AdP e não vão à concorrência”, realça Eduardo Marques. Esta preocupação estende-se também ao processo recente de constituição de entidades agregadas no setor da água, através de parcerias público-públicas, em que a participação da AdP detém participação maioritária. No entender da AEPSA, a criação destas entidades “sem concurso público” representa uma “violação das regras da contratação pública”. Isto porque, dizem, não foram verificados os pressupostos exigidos para utilizar o mecanismo in house, que permite dispensar um processo concorrencial. Entre estes, está o de que o município tem de manter um “controlo análogo” dos serviços abrangidos antes e depois da agregação, o que, não se verifica nas agregações participadas pelo grupo AdP, concretiza.
A associação alerta também para a “falta de equidade entre municípios” na atribuição de fundos comunitários. Em avisos recentes, lançados pelo POSEUR – Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos para o ciclo urbano da água, as concessões privadas não foram incluídas entre as entidades elegíveis. “Quem está a ser prejudicado não é a concessionária”, reforça o presidente da AEPSA. “São os munícipes desses municípios que têm concessões privadas, porque, por definição, esses subsídios europeus, a serem atribuídos, vão corresponder a reduções tarifárias”, concretiza. O “bloqueio ou mesmo reversão da concessão da gestão dos sistemas de água a entidades privadas em ‘baixa’ é outro dos pontos incluídos na denúncia. Em causa está a norma inscrita no Orçamento de Estado de 2021 que prevê a eliminação dos limites de endividamento das autarquias em caso de empréstimos contraídos para pagamento de resgate de contrato de concessão. Segundo a AEPSA, a disposição “levanta questões de constitucionalidade”, estando novamente em causa a equidade entre municípios.
Os operadores privados alertam ainda para limitações no acesso das entidades privadas ao mercado. Em particular, referem “medidas discriminatórias” como a cobrança de IVA de 6% nos serviços de saneamento – quando as entidades que operam em regime de gestão direta estão isentas – ou a aplicação de taxas de regulação. Por outro lado, o prazo máximo para concessões privadas é de 30 anos, quando as concessões públicas, podem ir até aos 50, como sucede no caso das agregações. “Isto tem um impacto brutal na tarifa”, sublinha Eduardo Marques, porque “os investimentos que sejam feitos numa concessão têm de ser amortizados no período da concessão”. A AEPSA enfatiza também a falta de abertura de concursos para atribuição de subconcessões, no serviço em alta, ou para o lançamento de novas prestações de serviços, no serviço em baixa, apesar de “a legislação apontar nesse sentido”. Com tudo isto, para a associação, o que está a ser posto em causa é o contributo dos privados para a sustentabilidade do setor: “Quando se potencia o mercado, o preço é mais baixo e a eficiência é maior porque há concorrência”, argumenta Eduardo Marques. “A razão de ser da queixa da AEPSA faz todo o sentido”, analisa José Eduardo Martins, da Abreu Advogados, em resposta ao Água&ambiente. “Não podemos violar a liberdade de estabelecimento, atribuindo permanentemente ajudas de Estado a instituições que são substratos empresariais como os outros”, justifica. A falta de equidade na atribuição de fundos comunitários é outro fundamento que o advogado considera sustentado pelos factos. “Como é possível manter a liberdade municipal das concessões e condicionar o acesso aos fundos para executar as coisas?”, resume.
Águas do Porto reclama igualdade de oportunidades
Não são só os operadores privados que estão preocupados. Para a Águas do Porto, o Decreto-Lei 16/2021 pode contribuir para agravar desigualdades no setor. “O setor da água está cheio de desequilíbrios estruturais”, reconhece Frederico Fernandes, CEO da Águas do Porto – que resultam de diferenças territoriais, de escala, de modelo de gestão – mas a legislação deveria “aproximar e igualar as oportunidades das várias entidades e não ser promotor de uma clivagem ainda mais profunda”, defende. O gestor não põe em causa a tentativa do Governo de “tirar algumas amarras” e facilitar o caminho a entidades gestoras que pretendam apostar em projetos inovadores na área da reutilização da água e da economia circular. O que o preocupa é que as entidades municipais – como a Águas do Porto – não tenham acesso às mesmas oportunidades. O diploma “cria uma rampa de lançamento para tudo o que sejam sistemas multimunicipais fazerem este percurso e deixa as outras [entidades] de fora”, realça. O diploma estabelece a reutilização de água como atividade principal dos sistemas multimunicipais e dispensa a necessidade de pareceres prévios da ERSAR e da Autoridade da Concorrência para atividades acessórias, não previstas nos contratos de concessão, desde que estas correspondam a atividades de interesse ambiental, social ou reputacional.
Prevê ainda que, no exercício destas atividades, por parte dos sistemas multimunicipais, possa haver uma recuperação tendencial – e não integral – dos custos: até 70% do valor de investimento e custos de exploração no período da concessão. “Facilidades” que o gestor não questiona e que até podem contribuir para “criar espaço para a inovação”, sublinha Frederico Fernandes, dado que um projeto inovador, nomeadamente na área da reutilização de água, não deve ser visto apenas numa perspetiva “exclusivamente financeira”, devendo-se valorizar também “a componente ambiental”. “Acho que é muito difícil fazer um projeto destes exigindo à partida uma recuperação total de custos”, ilustra. O que não aceita é que uma entidade como a Águas do Porto fique “fora do comboio” e, depois, os contribuintes da cidade ainda sejam chamados “a pagar o défice de um projeto destes que seja implementado noutra localidade”, por via de transferências do Orçamento do Estado. “Esse custo mais tarde ou mais cedo irá repercutir-se nalgum lado”, lembra.
Para Frederico Fernandes, a solução é simples: as facilidades previstas no diploma deviam ser abertas a outras entidades. “Era importantíssimo ter um sinal do governo de que todas as ETAR devem ser tratadas como igual e todos os privilégios de implementação de projetos devem estar ao alcance de qualquer um independentemente da sua natureza ou enquadramento jurídico”, diz. Até porque, recorda, apesar do setor ser constituído por entidades que atuam em monopólios territoriais, no acesso a fundos comunitários, estão todos em concorrência. E, neste contexto, o caminho está aberto para “quem vê um horizonte mais limpo para implementar um projeto destes”, argumenta. Para a Águas do Porto, o tema é particularmente relevante porque estão a ultimar o caderno de encargos “para um concurso gigante de conceção-construção”, cujo valor pode ascender a 50 milhões de euros, que visa a renovação das duas ETAR que gerem. O projeto prevê vários upgrades relativamente a duas infraestruturas com cerca de 20 anos: melhorias no processo de tratamento, valorização de lamas e conversão de biometano em energia, e a reutilização da água para rega de espaço verdes. Para além de trazer benefícios no plano ambiental, o projeto pretende também “garantir que as tarifas de saneamento ficam menos expostas a pressões” externas, como o aumento do custo da energia ou da gestão de lamas. No final do ano, o projeto estará pronto para avançar, mas a sua implementação depende de fundos comunitários.
Ministério do ambiente defende decisões
Questionado pelo jornal Água&ambiente sobre estas matérias, o Ministério do ambiente e Ação Climática esclarece, desde logo, que “desconhece o teor da suposta denúncia apresentada pela AEPSA à Comissão Europeia”. “Face a esse desconhecimento, não temos elementos para poder comentar especificamente qualquer dos elementos da referida denúncia”, justifica. Ainda assim, adiantou alguns esclarecimentos relativamente a algumas decisões recentes. Sobre as mudanças previstas no Decreto-Lei 16/2021, o MAAC salienta que a promoção do uso eficiente de água e da circularidade deste recurso “tem sido uma das principais prioridades do Governo”, para dar resposta “às exigências das alterações climáticas”. O facto dos sistemas multimunicipais serem “aqueles que dispõem de maior volume de residual passível de ser reutilizada”, porque tratam cerca de 70% das águas residuais recolhidas no continente, justifica que liderem o processo de mudança. “Estes sistemas são, por isso, a prioridade em termos de medidas que possibilitem maximização dos projetos em termos de oferta e de procura de água para reutilização”, defende o ministério.
No entanto, isto “não significa, porém, que a produção de água para reutilização apenas possa ser exercida por estes”. No que se refere aos sistemas municipais, esta possibilidade está “expressamente prevista no regime jurídico aplicável a estes sistemas”. Quanto às concessões, também o poderão fazer “desde que esta atividade se encontre também enquadrada no âmbito do respetivo contrato”. Já a transferência de 50 milhões até 2025 para a Águas do Norte surge na sequência do processo de cisões nos sistemas em alta iniciado ainda em 2016. Segundo o MAAC, “a correção de assimetrias regionais e locais” a par de “um objetivo de progressiva autonomização financeira do setor” foi o que levou o Governo a avançar para “soluções de compensação tarifária entre entidades gestoras em alta do setor”. Na sequência das cisões operadas em 2016, foram contemplados apoios no Fundo Ambiental, visando “assegurar tarifas equilibradas” para os sistemas multimunicipais Águas do Norte e Águas do Vale do Tejo. Como o valor de compensação atribuído pelo Fundo Ambiental à Águas do Vale do Tejo previa já transferências até 2026, enquanto a Águas do Norte previa transferências só até 2021, a adaptação das transferências para a Águas do Norte “visou apenas tornar o mecanismo de apoio do Fundo Ambiental semelhante entre as duas entidades”, conclui o MAAC Mas “este apoio não é, de forma alguma, um auxílio de Estado ilegítimo”, argumenta o Ministério, visto que o sistema gerido pela Águas do Norte “opera unicamente na alta, ou seja, não fornece água, por regra, aos clientes finais, mas apenas a municípios utilizadores do sistema”. “Todos esses utilizadores do sistema (incluindo os municípios que têm o serviço em baixa concessionado) beneficiam destes apoios”, realça o Governo.
POSEUR: não há acesso desigual, diz MAAC
Já no que respeita ao acesso a fundos comunitários, o MAAC sublinha, desde logo, que quer as concessões, quer as empresas municipais que detém participação minoritária de privados estão incluídas no lote de beneficiários destes apoios, segundo o regulamento do POSEUR. E avançam dados concretos para demonstrar que “não existiu acesso desigual dos operadores privados a este tipo de financiamento”. Até ao momento, foram abertos 20 avisos no âmbito do ciclo urbano da água, ainda que 9 dos quais em modalidade de convite “para a resolução de problemas específicos”. Em metade dos avisos foram consideradas elegíveis concessionárias municipais e em 13 deles era elegível o setor empresarial local. Nos 7 avisos abertos, aos quais as concessionarias eram elegíveis, foram disponibilizados mais de 203 milhões de euros de fundos europeus. “Foram recebidas apenas 11 candidaturas dessa tipologia de entidades”, tendo sido aprovadas 5 operações “que totalizaram 8,1 milhões de euros de apoio da União Europeia”. “Se acrescermos a estas entidades as empresas do setor empresarial local que têm participação privada (ainda que minoritária) o valor de apoio comunitário aprovado para esses casos foi de 16,7 milhões de euros”, acrescenta o MAAC.
Quanto à eliminação dos limites de endividamento das autarquias para pagamento de resgate de contrato de concessão, o MAAC recorda que se trata de uma lei aprovada pela Assembleia da República e não pelo Governo. Mas defende o seu teor na medida em que se refere a situações excecionais” e possibilita que os limites de endividamento “possam ser ultrapassados no decurso de decisão judicial ou arbitral de pagamentos pelos municípios a concessionarias ou para efeitos do resgate da concessão”. No primeiro caso, se o município estivesse impossibilitado de se endividar, isto até “impactaria certamente no valor a receber pelas empresas concessionárias municipais ou nos prazos desse pagamento”, nota o Ministério. Já o resgate da concessão é “uma prerrogativa a que é sempre possível recorrer” prevista nos contratos de concessão e, para o MAAC, limitar o recurso ao endividamento “tornaria a decisão relativa ao interesse público no resgate de uma concessão refém da existência ou ausência dos referidos recursos financeiros”. Ainda assim, “ao concessionário é sempre assegurado o direito à indemnização em caso de resgate por motivos de interesse público”, sublinha a tutela.