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Associação de Beneficiários do Mira está a racionar a distribuição de água. Quem está fora do perímetro de rega pode deixar de ter acesso e os outros têm quota anual reduzida. Poços tradicionais estão a secar e não há controlo sobre os furos, que estão a secar os lençóis freáticos da região
Este ano Henrique Real ainda não sabe se vai continuar a ter água nas torneiras da casa ou para regar a pequena horta, no limite sul do concelho de Odemira. “Face à situação atual de escassez de água e às alterações climáticas, temo que o abastecimento seja condicionado”, diz ao Expresso. E reforça: “Receio mesmo que a água não venha a chegar para todos, perante o aumento contínuo da ocupação por estufas e agricultura intensiva no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina”.
Como tem sido hábito, desde que tem casa no Monte da Eira Velha, na freguesia de São Teotónio, Henrique Real enviou o habitual requerimento à Associação de Beneficiários do Mira (ABM), em janeiro, a pedir acesso ao abastecimento de água a partir do canal, para consumo doméstico e para rega da horta. Fá-lo desde 2012, por não ter outra alternativa, já que à sua casa não chega a água da rede pública municipal (como atesta uma declaração da Junta de Freguesia de S. Teotónio). E o poço existente no terreno (desde meados do século passado) está prestes a secar. Mas não obteve resposta até agora.
“Entre 100 e 150 proprietários” — de casas que servem de primeira ou segunda residência ou para alojamento local/ ocupação turística ou outro tipo de atividades — “estão classificados como ‘precários’”, indica ao Expresso Carla Lúcio, diretora executiva da Associação de Beneficiários do Mira, o que os pode colocar fora do acesso à água este ano. “Devido às baixas reservas da albufeira de Santa Clara, há necessidade de limitar o fornecimento de água para a campanha de 2021 por beneficiário inscrito”, explica a diretora executiva da ABM, frisando que “o abastecimento de casas isoladas devia ser garantido pela rede pública, em vez de ser por um tubinho que lhes faz chegar a água a partir dos nossos canais de rega”. Contudo, Carla Lúcio assegura que “quem não tem acesso à água pública da rede não vai ficar sem água em casa”, mas que “é preciso fazer um rateio e criar regras para a fornecer”. E uma coisa é o abastecimento doméstico e outra as piscinas ou jardins.
AGRICULTURA INTENSIVA LEVA 91% DA ÁGUA DA BARRAGEM
A Associação de Beneficiários do Mira é uma organização privada, sem fins lucrativos, tutelada pelo Ministério da Agricultura, que gere e explora os aproveitamentos hidroagrícolas do Mira e de Corte Brique, disponibilizando água aos beneficiários e promovendo a agricultura de regadio. É esta entidade que controla a albufeira de Santa Clara, que está a 50% da sua capacidade, e da qual retira atualmente metade da água disponível no chamado “volume morto”, através de um sistema elevatório, para fazer chegar a água aos beneficiários. Desde julho de 2019 que a captação de água por gravidade deixou de ser possível, porque a cota da barragem chegou a 115,8 metros. Em dezembro de 2020 estava a 112 metros.
Cerca de 90% desta água vai para agricultura, 6% para abastecimento público dos municípios alentejanos abrangidos e 3% para a indústria (minas de Neves Corvo), indica a ABM. Em 2011, a utilização dos recursos hídricos para fins agrícolas correspondeu a 82% e em 2015 a 89%, segundo um relatório da Inspeção Geral do Ambiente, Agricultura e Ordenamento do Território (IGAMAOT).
Questionada sobre os riscos de a agricultura intensiva de regadio ali praticada continuar a sugar tanta água, a diretora executiva da ABM defende que “o problema é a redução das afluências de água [falta de chuva] à albufeira, o que se deve sobretudo à ocorrência de uma sequência de anos secos, mais do que aos consumos de água”. Segundo os dados de que dispõe, “não houve um aumento exponencial do consumo de água para a agricultura”, uma vez que, “nos últimos 10 anos o consumo anual agrícola médio para a totalidade do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira foi de 32,5 hm3”, sendo que “na campanha de 2009 foram fornecidos 33 hm3 para regar 6338 hectares e na campanha de 2020 foram fornecidos os mesmos 33 hm3 para a rega de 7115 hectares”.
Mas como em tudo o que diz respeito a números da agricultura no perímetro do Mira é preciso olhar para os dados e documentos com atenção. O Expresso analisou o relatório e contas da ABM de 2019 (não está disponível no site o de 2020) e constatou que “foram fornecidos 41,3 hm3 de água para a campanha de 2019” (mais cerca de 8 hm3 que em 2009). Já “o aumento do volume de água para a agricultura registou um acréscimo de quase 14%”, numa área total de 7047 hectares. Em 2019, cada hectare agrícola teve acesso a uma média de 5347 metros cúbicos anual (m3/ano), mas em 2021, os beneficiários estão limitados a não mais de 3500 m3/ ha/ano, devido à escassez de água.
O presidente da Câmara Municipal de Odemira, José Alberto Guerreiro, já tinha alertado há cerca de uma semana para a “forte possibilidade de haver falta de água na região” e de a “água disponível na albufeira da barragem de Santa Clara só chegar para o período de um ano, caso não chova”, apontando o dedo à agricultura intensiva.
Na sequência destas palavras, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) emitiu um comunicado procurando assegurar que haverá água para abastecimento público para, pelo menos, mais dois anos (5 000 000 m3). Contudo, a autoridade nacional da água admitiu que “se tem verificado uma diminuição do volume armazenado na albufeira de Santa Clara”, que deve chegar ao final do ano hidrológico 2020/2021 a 44% da sua capacidade total, no cenário mais desfavorável”. Mas frisou que “a primeira prioridade é o abastecimento às populações, sendo a rega de culturas temporárias a sexta prioridade”.
FALTA DE CONTROLO E FISCALIZAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS
“Há dois anos que a barragem de Santa Clara está abaixo do chamado nível morto, ou seja, abaixo do nível que deveria impossibilitar a exploração para atividade agrícola”, aponta Nuno Carvalho, do movimento Juntos pelo Sudoeste. E não percebe “como é que a APA não vê aqui um problema”. Também ele, proprietário de um pomar com 30 árvores e uma horta, com uma parcela dentro e outra fora do perímetro de rega, se defronta com a possibilidade de não ter acesso à água gerida pela ABM. Contudo, acrescenta, “a agroindústria continua a levar mais de 85% da água da albufeira e o sistema do perímetro de rega do Mira é tão antiquado que leva a desperdícios incríveis”. Além disso, reforça, “a APA devia controlar e fiscalizar a qualidade e a quantidade das águas superficiais e subterrâneas, mas não o faz”.
O relatório da IGAMAOT de 2018 chamava a atenção para o facto de as explorações agrícolas constituírem “uma pressão qualitativa e quantitativa sobre os recursos hídricos” na região do Sado e Mira e apontava para também para a “carga poluente (difusa) associada (de azoto e fósforo)”. O relatório, homologado então pelo ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, indicava que a APA tinha “a responsabilidade de realizar a monitorização da qualidade da água” em diversos pontos do sistema de rega, assim como a “conhecer a evolução do estado das massas de água subterrâneas e superficiais na área”. Questionada pelo Expresso sobre o que fez desde 2018 para analisar a qualidade de água na região do perímetro de rega do Mira no PNSACV e a que conclusões chegou, a APA apenas diz que “considera que as massas de água subterrânea e a maioria das massas de água superficial nesta área se encontram igualmente em bom estado, tal como está patente no relatório de 2014-2017” e que a avaliação dos dados obtidos até 2019 deverá “ser concluída durante o 2º semestre do presente ano”.
Dentro dos atuais mais de sete mil hectares de explorações agrícolas integradas no perímetro de rega do Mira, que levam 91% da água captada na albufeira, constam 1545 hectares de estufas, estufins e outras estruturas de plástico para proteger culturas de frutos vermelhos e hortícolas, segundo dados do Ministério da Agricultura. Esta área corresponde a perto de 13% dos 12 mil hectares do perímetro de rega do Mira e pode chegar a 4800 hectares, se atingir o limite de 40% autorizado pelo Governo em 2019.
“Dentro de um ou dois anos, até para as estufas pode deixar de haver água”, sublinha ao Expresso José Manuel Guerreiro, ex-presidente da Junta de Freguesia de São Teotónio, à qual presidiu durante 20 anos. O ex-autarca receia que também os lençóis freáticos subterrâneos estejam a secar e estima que “mais de metade dos furos para captação de água existentes no concelho de Odemira não estão licenciados”.
No site da APA (sistema SNIRH) estão identificados 157 furos para captação de água no concelho de Odemira, 22 poços, 3 nascentes e 11 charcas, sem qualquer indicação do estado em que se encontram. No início deste ano, numa audição da Comissão de Agricultura e Mar, o professor Mário Carvalho, da Universidade de Évora, chamou a atenção para o facto de “a monitorização do uso de água subterrânea no Alentejo ser pouco fiável” e que “alguns aquíferos podem ter baixado 6 a 7 metros nos últimos 20-30 anos”, deixando claro que o modelo de agricultura intensiva seguido no Alentejo “não é sustentável”.
*artigo atualizado às 17h31 com resposta da APA sobre avaliação das massas de água