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A metáfora é forte, mas realista e foi usada pelo biogeógrafo Miguel B. Araújo na conferência dedicada a “Um Novo Começo para as Pessoas e a Natureza”, que abriu esta segunda-feira a Semana Verde Europeia a partir de Lisboa. No mesmo dia, a Agência Europeia do Ambiente divulgou o seu último relatório, que conclui que “81% dos habitats e 63% das espécies da Europa estão a desaparecer”, e os ambientalistas alertaram para os movimentos de bastidores dos grandes lóbis agroindustriais em Bruxelas, que se preparam para devorar mais uma vez o bolo da PAC em contraciclo com o que defende a estratégia europeia para a biodiversidade
“Estamos a devorar o nosso Planeta”. A constatação é do biogeógrafo Miguel Bastos Araújo e proferiu-a na conferência de abertura da Semana Verde Europeia 2020, que arrancou esta segunda-feira, em Lisboa, sob o lema “Um Novo Começo para as Pessoas e a Natureza”. Este investigador da Universidade de Évora e co-organizador da conferência, promovida pela Câmara de Lisboa na qualidade de Capital Verde Europeia 2020, sublinhou a ideia recordando que a transformação do uso do solo, sobretudo a intensificação agrícola em muitos cantos do mundo, está a conduzir a “uma catástrofe de proporções gigantescas”.Aos 94 anos, David Attenborough não quer ver o planeta a morrerO homem que mostrou o mundo ao mundo reinventa-se aos 94 anos. “David Attenborough: Uma Vida no Nosso Planeta” é o olhar do naturalista sobre um planeta que se aproxima do abismo. Terá a solução para salvá-lo?
Da destruição das florestas na Indonésia para produzir o óleo de palma que integra os cereais de pequeno almoço que comemos à custa do habitat dos orangotangos, à devastação da Amazónia para plantar soja ou criar o gado que se transforma em bifes nos nossos pratos, sem esquecer as estufas de frutos vermelhos para exportação que se estendem pelo Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, exemplos não faltam. “Não podemos querer ter Natureza e estar a consumi-la ao mesmo tempo”, frisou. E aconselhou: “Mais do que um novo homem precisamos de uma nova sociedade”, que consuma menos, e “de aumentar as áreas de proteção efetiva, se queremos proteger a biodiversidade”.
Atualmente, apenas 18% da área terrestre europeia e quase 10% da área marinha estão protegidas no âmbito da Rede Natura 2000. E o objetivo, definido na Estratégia Europeia para a Biodiversidade, é chegar a 2030 com 30% da área terrestre e marinha protegidos. Porém, apenas 3% do território europeu tem medidas efetivas de proteção e em Portugal, com 22% de território integrado na rede Natura ou em parques e reservas naturais, a área de proteção real não vai além de 1%.
O facto de até agora a Europa e o mundo terem falhado as metas — definidas para 2010 e para 2020 para travar a perda de biodiversidade — levou vários dos investigadores presentes na conferência, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, a manifestar o seu cepticismo em relação ao cumprimento dos objetivos traçados pela União Europeia e pela Organização das Nações Unidas. Isto porque, apesar de as alterações climáticas já serem uma prioridade elevada na agenda política, a biodiversidade ainda não alcançou o mesmo estatuto, como admitiu o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, na sessão de abertura. “Os impactos associados à perda de biodiversidade ainda são pouco perceptíveis pela sociedade”, afirmou. E isso reflete-se nas políticas públicas.
Entretanto, ”um milhão de espécies estão ameaçadas” no mundo, lembrou Ruben Heleno, da Universidade de Coimbra. Este biólogo, que se dedica ao estudo dos polinizadores, espécies em declínio desde os anos 70 dos século XX, frisou que “tal como um avião precisa de milhares de pequenas peças para funcionar, o nosso planeta só funciona porque dele fazem parte milhões de espécies diferentes”.
NATUREZA EUROPEIA EM RISCO
A saúde da natureza na Europa está longe de estar em bom estado, confirma o relatório “Estado da Natureza na UE ”, divulgado também esta segunda-feira pela Agência Europeia do Ambiente (AEA). Com base nos resultados da avaliação aos dados relativos ao período entre 2013 e 2018, a autoridade europeia constatou que “a biodiversidade da Europa continua a diminuir a uma taxa alarmante”: 81% dos habitats e 63% das espécies da Europa estão a desaparecer e apenas 15% dos habitat avaliados apresentam um bom estado de conservação. As ameaças são as do costume: a expansão urbana, a agricultura e silvicultura insustentáveis, a sobrepesca, a caça furtiva, a invasão por espécies exóticas e a poluição.
Apesar de nestes seis anos ter havido um aumento das áreas classificadas na UE, a Agência Europeia considera que “o progresso geral não é suficiente para atingir os objetivos da Estratégia Europeia para a Biodiversidade até 2020”. Segundo o diretor executivo da AEA, Hans Bruyninckx, “a avaliação mostra que a salvaguarda da saúde e resiliência da natureza da Europa e do bem-estar das pessoas exige mudanças fundamentais na forma como produzimos e consumimos alimentos, gerimos e usamos as florestas e construímos cidades. Esses esforços precisam de ser combinados com uma melhor aplicação das políticas de conservação, um foco na restauração da natureza, bem como uma ação climática cada vez mais ambiciosa”.
“NÓS SABEMOS”
Os dados deste relatório vêm confirmar o que já se sabia. “Nós sabemos. Estamos a destruir o planeta”, frisou o biólogo Emanuel Gonçalves, da Fundação Oceano Azul, na conferência. “Se não fosse o oceano já não havia planeta”, disse, lamentando que “apenas 5% dos oceanos” tenham “estatuto de proteção” e apenas 2% sejam “verdadeiramente protegidos”.
Os investigadores presentes na conferência de abertura da Semana Verde Europeia fizeram todos questão de sublinhar que a destruição da natureza tem consequências diretas para as pessoas, como demonstra a atual pandemia e outras que a precederam. E que por isso é preciso descarbonizar a economia e renaturalizar o que foi destruído ou transformado pelo Homem.
“Só invertemos a perda de biodiversidade se acabarmos com os subsídios às pescas e à agricultura”, lesivos para o ambiente, assegurou na sua intervenção a bióloga Helena Freitas, da Universidade de Coimbra. E advertiu: “Mesmo que isso obrigue a decisões difíceis por parte dos Governos.”
Desmistificando a ideia de que precisamos de mais terra para alimentar uma população em crescimento acelerado no mundo, Francisco Moreira, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO-InBIO), fez notar que “a biodiversidade é a base da nossa alimentação” e que precisamos da natureza para regular as pastagens, os cursos de água, a polinização das plantas, o ar que respiramos e o clima. Fazer agricultura em mosaicos arranjando espaço para paisagens biodiversas ao lado de campos agrícolas, ou seja “usar a natureza em vez de químicos”, é o caminho mais acertado, apontou.
Esta ideia faz parte da estratégia europeia para a Biodiversidade e a “do Prado ao Prato”. Entre as metas estabelecidas nestas orientações estão a atribuição de 25% da terra agrícola para modos de produção biológicos e de 10% para paisagens biodiversas. “A questão chave para isto nos próximos 10 anos é a Política Agrícola Comum (PAC)”, apontou Francisco Moreira. O problema, lamentou, “são os grandes lóbis que dominam a agricultura na Europa”.
OS LÓBIS E A NECESSIDADE DE “EMOÇÕES”
Ainda esta segunda-feira, a rede de organizações não governamentais (ONG) European Environmental Bureau chamou a atenção para as decisões de financiamento da PAC que estão em jogo em Bruxelas. Os ministros da Agricultura vão decidir esta semana sobre o formato da política agrícola até 2027 e como vão distribuir os 350 mil milhões de euros do pacote. O voto do Parlamento Europeu foi subitamente antecipado para o final do dia desta terça-feira, sem que os deputados soubessem porquê. Isto faz com que as expectativas sejam ainda piores face ao desfecho da votação.
Os ambientalistas têm informações que apontam para que dezenas de milhões de euros de fundos públicos possam ir parar aos grandes proprietários de terras que representam apenas 1% dos agricultores, continuando a contribuir para o colapso ecológico e colidindo ou criando incoerências com a estratégia “Do Prado ao Prato”.
Mais otimista mostrou-se Humberto Rosa, Diretor para o Capital Natural da Direção-geral de Ambiente da Comissão Europeia, que no palco da Gulbenkian sublinhou que “a atual estratégia para a biodiversidade é a mais ambiciosa de sempre” e que “o Green Deal está a ir na direção certa”. Humberto Rosa, também biólogo e ex-secretário de Estado do Ambiente português, reafirmou qual é a máxima: “queremos renaturalizar a Europa.”
Certo, disse, é que “não conseguiremos viver de forma próspera sem a biodiversidade”, tendo em conta que cerca de 50% do PIB mundial depende da natureza. Por isso, Humberto Rosa também não tem dúvidas de que todos os planos de recuperação económica dos Estados membros no contexto pós-COVID “têm de ter a palavra biodiversidade” no seu texto. Porém, para que a sociedade leve os decisores políticos a agir, aconselha: “É preciso mostrar-lhes factos que as emocionem”, como fez David Attenborough no seu último documentário, “A minha vida no nosso Planeta”.