fotomontagem sobre fotografia getty imagesAinda que chova, Portugal está outra vez em período oficial de seca, como acontece com grande incidência no sul da Europa. Por estranha antítese, somos o segundo país onde se gasta mais água per capita, em igualdade com os gregos, sendo só ultrapassados pelos noruegueses. Os portugueses continuam de torneira aberta e cada um deixa correr, por dia, uma média de 187 litros de águaTexto Luís Pedro Cabral Infografia Carlos EstevesNo momento da conceção, o óvulo fertilizado é 96% de água, mais coisa, menos coisa. Quando nasce, um bebé é 80% água. O ser humano é essencialmente água, tão certo como a seca, que já vem dos tempos da dança da chuva. Um corpo adulto é 70% água, quase equivalente à percentagem de água no planeta. Uma coisa é a água que somos, outra a que necessitamos, outra a que consumimos, outra ainda, a que desperdiçamos. Cada pessoa, necessita em média cinco litros de água por dia para o básico: beber, cozinhar alimentos. Para uma qualidade de vida e níveis sanitários equilibrados em comunidade, são necessários em média 80 litros de água por dia, para a lavagem e eliminação de resíduos.Mesmo em períodos de seca, como o que agora se verifica em Portugal (cada vez mais frequentes, consequência das alterações climáticas), os hábitos de consumo de água só diminuem por força da condição e não da razão. Globalmente, os padrões de consumo de água têm aumentado de forma gradual e ininterrupta desde pelo menos 1980. De acordo com a Agência Europeia do Ambiente, o consumo mundial de água tem desde esse período aumentado a um ritmo anual de 1%, o que significa obviamente que o consumo global de água aumentou até à data 39%, acompanhando o aumento populacional e o desenvolvimento socioeconómico das populações em geral, que em combinação foram alterando os padrões de consumo de água, sendo que a Europa não foge à regra, assim como Portugal. Segundo os mesmos dados, as previsões apontam para que esta tendência de aumento de consumo (1% por ano) se mantenha “estável” pelo menos até 2050, representando nesse futuro próximo um aumento planetário de consumo de água em 70% desde a data barómetro (1980). Nessa rota, só o imprevisível tem superávite.Os dados da Agência Europeia do Ambiente são verdadeiramente assustadores. No mundo, mais de dois biliões de pessoas vivem em países com elevados níveis de stresse hídrico. Perto de quatro biliões sofrem escassez severa de água pelo menos durante um mês por ano. As previsões, portanto, não são otimistas. O stresse hídrico, enquanto flagelo social, continuará a alastrar em muitas regiões do globo e a agudizar em muitas outras onde já é realidade. A crescente necessidade industrial e doméstica da água é em algumas regiões o preço a pagar pelo desenvolvimento, sendo que noutras representa a imensa fatura do subdesenvolvimento. De qualquer das formas, a procura global da água só irá intensificar-se, intensificando com esta os níveis e as zonas atingidas pelo stresse hídrico, que a AEA não tem dúvidas em classificar como ameaça planetária. Tão real, quanto estes números: no mundo, três em dez pessoas não tem acesso a água potável, consumindo água considerada não segura. Mais de metade destas pessoas está concentrada numa região específica: a África subsariana (a sul do deserto do Sara). No planeta, seis em cada dez pessoas não tem ainda acesso a condições sanitárias básicas. Não é só um problema de saúde pública global como uma questão de direitos humanos.Quando se fala de água, depois das secas, o maior problema são as inundações. Pode parecer um paradoxo quase bíblico, ao qual se poderia juntar um enorme caudal de descargas poluentes. Na Europa, 18% da água captada destina-se ao abastecimento público; 30% é usada na agricultura (irrigação), 14% na indústria; 38% na produção de energia hidroelétrica e na refrigeração. No consumo doméstico, Portugal, já é membro consistente na lista de países considerados em “stresse hídrico”, eufemismo de território com recorrentes e cada vez mais prolongados períodos de seca.As últimas décadas têm provado à saciedade o quanto muitos países europeus se encontram vulneráveis aos baixos valores de precipitação, que em conjunto conduzem a longos períodos de secaPor outro lado, que é o mesmo, Portugal é o segundo país da Europa com maior taxa de consumo per capita de água, ex aequo com a Grécia, só ultrapassados pela Noruega, onde cada pessoa gasta em média 200 litros de água por dia. Como se vê, a Noruega não é propriamente um exemplo em matéria de consumo doméstico de água. Por outro lado, é na Noruega que se encontra a segunda maior disponibilidade de água doce da Europa, só atrás da Islândia. Portugueses e gregos gastam em média por dia 187 litros de água, sendo que no caso português o consumo doméstico representa, por pessoa, um gasto diário de 124 litros de água. É no distrito de Lisboa que se consome mais água por pessoa diariamente em todo o país: 281 litros. No entanto, é no distrito de Évora que o consumo doméstico é mais elevado: 175 litros de água por pessoa por dia. É em Viana do Castelo que se verifica o menor consumo per capita: 144 litros de água por dia, correspondendo o consumo doméstico a 101 litros por dia. De registar, por exemplo, o consumo no Algarve, que atualmente se encontra oficialmente em situação de “seca extrema”, assim classificada pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Em Faro, o consumo médio diário de água por pessoa é de 243 litros.Continuando a navegar pela Europa, a Suécia quarto país europeu com mais recursos hídricos de água doce, depois da Finlândia , fica em terceiro em matéria de consumo por pessoa. Cada sueco gasta em média 160 litros de água por dia. Seguem-se os franceses nesta lista de consumo, com 151 litros de água por dia. Cada suíço consome em média 142 litros de água diários; cada romeno 138 litros, um litro a mais do que consomem diariamente espanhóis e austríacos. Um irlandês gasta em média 130 litros de água por dia, cada holandês, 128 litros. Os alemães são um pouco mais moderados: 120 litros por dia de consumo per capita. Os dinamarqueses e os eslovenos estão praticamente equiparados em hábitos de consumo de água, com 108 e 106 litros, respetivamente. Abaixo dos 100 litros de consumo diário por pessoa ficam os belgas, na zona de fronteira, com 98 litros, na companhia próxima dos polacos (97 litros), seguidos de perto pelos magiares, com 95 litros consumidos por dia. Os checos têm uma média de 83 litros por dia. Curiosamente, são os eslovacos os que menos água gastam por dia na Europa, três vezes menos que um português ou um grego: 58 litros.Em Portugal, o foco de preocupação não está na qualidade, mas na quantidade da água, problema que se agrava com as ausências cada vez mais prolongados de precipitação. As últimas décadas têm provado à saciedade o quanto muitos países europeus se encontram vulneráveis aos baixos valores de precipitação, que em conjunto conduzem a longos períodos de seca. Os países do Sul da Europa, com Portugal no sequioso pelotão da frente, são os mais atingidos.Já são várias as regiões de Portugal em que a escassez de água nas albufeiras e nos rios se instalou na paisagem, conduzindo a uma inevitável deterioração na qualidade geral destas águas, que não refletem a qualidade do abastecimento público de água, que em Portugal está bem e até se recomenda, através dos 108 mil e 757 quilómetros de extensão da rede pública de abastecimento. Por ano, são efetuadas 508 mil análises à qualidade da água portuguesa. Por dia, são tratados 1,7 milhões de metros cúbicos de águas residuais. Segundo a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, 96% dos alojamentos em Portugal continental são servidos pela rede pública de abastecimento de água. Eis o lençol do problema: a água, enquanto bem essencial, tem vindo a escassear e, em paralelo, a sua procura a aumentar. Enquanto isso, Portugal teima em provar que mesmo em tempo de seca, não se mudam hábitos. As consequências tornar-se-ão um dia claras. Como água.