A discussão sobre a deterioração dos recursos do planeta parece mais acesa do que nunca. O P2 conversou com três especialistas e activistas que dão pistas para modos de vida e de consumo mais responsáveis. Kala Vairavamoorthy pensa em formas de poupar e reaproveitar água; Suzy Cameron aconselha uma refeição vegan diária; Béa Johnson dá a cara pelo movimento Desperdício Zero
Devemos usar nas sanitas água que podemos beber?
“Não faz sentido”
Em Chennai, era o som que, a qualquer hora do dia ou da noite, anunciava que a água vinha aí. Quando Kala Vairavamoorthy habitava nesta cidade indiana, que há muito enfrenta uma crise de água com tendência para se agravar, aprendeu a viver assim. Podia ser a meio da noite, mas, se se ouvia o barulho, era preciso esvaziar os recipientes, usando a água em tudo o que fosse necessário, para poder recolher mais – “porque não sabíamos se a iríamos ter nos dois ou três dias seguintes”. Além disso, tinham que “fisicamente transportar a água” e isso fazia com que a vissem como ela é: um recurso precioso.
Isto não acontece nos países europeus ou nos Estados Unidos. A água chega pelas torneiras, como se fosse inesgotável. E por isso as pessoas gastam-na exactamente como se ela fosse inesgotável. Kala Vairavamoorthy, director executivo da International Water Associa- tion (IWA), que esteve recentemente em Portugal para uma reunião deste organismo que integra 130 países, nasceu no Sri Lanka: “Venho do Sudeste asiático, onde temos uma cultura que respeita muito o ambiente e mantemos uma relação espiritual com a água. O meu pai costumava dizer que quando se tira água de um rio é como tirar um livro de uma biblioteca, alguém vai utilizá-lo a seguir e por isso queremos deixá-lo no mesmo estado em que o encontrámos.”
Numa cidade como a de Lisboa ou qualquer outra na Europa onde não se sente a falta de água, é difícil imaginar o quotidiano em Chennai, a capital do estado de Tamil Nadu, no Sudeste da índia. No título de uma reportagem realizada em Julho nesta cidade, o The New York Times resume-o em três palavras: “Ansioso, extenuante e suado”.
Os contentores de plástico de todas as cores tornaram-se parte da paisagem urbana de Chennai e um objecto indispensável para os seus mais de nove milhões de habitantes (Portugal tem dez milhões). Toda a gente os tem
em grande quantidade e é neles que pegam, precipitando-se para a rua, assim que corre a notícia de que estão a chegar os camiões- cisterna vindos das zonas rurais em torno da cidade.
O problema, explica Somini Sengupta, jornalista do The New York Times e autora do livro The End ofKarma: Hope and Fury Among índia Young, é que, na época da monção, ou chove muito pouco ou chove demasiado e aí a água transborda por todo o lado e corre pelas ruas até desaguar no golfo de Bengala. A isto soma-se o facto de, ao longo dos anos e à medida que o problema se agrava, os habitantes da cidade terem retirado cada vez mais água dos reservatórios subterrâneos naturais, que começam a secar.
Exemplo gritante, que o diário norte-americano identifica como uma das origens da crise, é o do Bairro de Velachery, construído há cerca de duas décadas sobre o lago com o mesmo nome. Não só as casas cresceram em cima do lago, como os seus residentes se habituaram, quando falta água, a ir buscá-la ao lençol subterrâneo que, a pouco e pouco, se está a esgotar.
O cenário é grave em cidades como Chennai, atingiu pontos preocupantes em 2018 na Cidade do Cabo, África do Sul, e, segundo um relatório das Nações Unidas, ameaça outras cidades, como São Paulo, no Brasil, que em 2015 viu o seu principal reservatório recuar para valores abaixo dos 4% da sua capacidade, obrigando a que o abastecimento fosse feito por camiões-cisterna escoltados pela polícia para evitar distúrbios; Bangalore, também na índia, onde o excesso de construção e a poluição afectam a quantidade e a qualidade da água; Pequim, cujas reservas têm vindo a cair de forma sistemática; Cairo, igualmente abraços com uma poluição severa; ou Jacarta, onde o recurso às águas subterrâneas está a esgotar estas reservas.
A lista das cidades em risco de enfrentar uma grave crise de água inclui ainda Moscovo, com muito poucas reservas subterrâneas; Istambul; a Cidade do México; e até a (pelo menos no nosso imaginário) chuvosa Londres, que recorre essencialmente aos seus rios para ter água potável; Tóquio, que também depende essencialmente das águas superficiais; e Miami, que viu as suas reservas subterrâneas contaminadas por água do oceano Atlântico.
Portugal gere mal a água
“A situação é séria em alguns sítios”, reconhece Kala Vairavamoorthy. “Por um lado, as alterações climáticas afectam a quantidade de água disponível em muitos países, por outro, temos o crescimento da população, em particular nos países em vias de desenvolvimento e sobretudo nas cidades. É uma população que está a crescer não apenas em número, mas também a pedir mais água porque tem um estilo de vida mais sofisticado.”
E se os sítios já afectados pela crise mudam a forma de se relacionarem com a água, “em muitos países, em Portugal, na Europa e em boa parte do mundo, não fazemos uma boa gestão da água”, afirma o responsável da IWA, cujo trabalho se foca sobretudo em soluções para as áreas urbanas.
Um dos principais problemas é que “tendemos a tratar toda a água de acordo com um nível de qualidade, o exigido para água que se pode beber, usamos essa água uma vez e deitamo-la fora”. Um dos exemplos mais chocantes é, possivelmente, o da água utilizada nas sanitas. “Se pudéssemos conceber as nossas cidades a partir do zero, não usariamos água potável nas nossas sanitas e não usaríamos necessariamente água para fazer deslocar os nossos dejectos nas canalizações. Estamos a empurrá-los com água que podemos beber”.
Neste momento, “as nossas práticas consomem grandes quantidades de água” e, se continuarem assim, “teremos grandes problemas no futuro”. Por isso, defende: “É importante repensarmos toda a forma como olhamos para a água.”
O caminho pode ser aberto pelas economias emergentes. “Essas têm uma pequena oportunidade para repensar a maneira como estão a lidar com a água” e conceber de raiz sistemas mais adaptados à actual situação. Cidades mais antigas como Lisboa ou outras capitais europeias têm sistemas já montados e que, na maior parte dos casos, funcionam, mesmo que com algumas falhas (os níveis de desperdício no sistema são elevados, por exemplo).
“Funcionam, mas não são sustentáveis”, resume. “Só que o imperativo para mudar não está lá porque pensamos que o problema pode não nos afectar durante as nossas vidas, serão os nossos filhos os afectados”. O facto, lamenta, é que é muito difícil levar as pessoas a mudar quando o problema parece adiado para a geração seguinte.
“A sociedade nunca fez as coisas de forma altruísta”, lembra. No caso da água, a maior parte das transições aconteceu porque resolviam problemas imediatos: ir buscar a água longe dava muito trabalho, era algo de pesado para levar às costas, daí que tenham surgido os sistemas de canalização.
Hoje, tecnologia e “capacidade intelectual” para implementar sistemas mais racionais existem, “mas o sector da água pode por vezes ser muito conservador e tem medo da mudança”. Muitas das infra-estruturas que foram criadas para durar 30 ou 50 anos já excederam o seu tempo previsto de vida. “Mas os engenheiros continuam a repará-las e a substituí-las, reforçando sempre o velho paradigma. É uma questão de mentalidade.”
Não se trata de fazer um corte com o que existe e começar do zero. O que se pretende é uma transição. Mas, seja qual for a solução a adoptar, há, na sua opinião, “uma mudança profunda que não tem a ver com a tecnologia, mas com a fragmentação institucional”. É preciso olhar para a água como um sistema que está todo interligado e “não compartimentar as diferentes componentes do seu ciclo”. Ou seja, não é eficaz que a distribuição, o tratamento e o reaproveitamento sejam encarados separadamente, e da responsabilidade de diferentes organismos.
“Os verdadeiros benefícios surgem quando encaramos o sistema como um todo, em que a água tem diferentes graus”, parte dela, de maior qualidade, é para beber e cozinhar, outra, de menor, para regar as plantas, outra ainda para as sanitas (se não se optar por um sistema que dispense a utilização de água para este fim).
Envolver “os tipos da água”
A boa notícia é que se começa a olhar para água residual (não tratada e não potável) como algo com um potencial muito maior do que se imaginava. “Antigamente, descarregávamos o autoclismo, víamos [a água com os dejectos] como um peso e pensávamos: ‘O que vamos fazer com isto?’. Agora dizemos que tem valor, que podemos criar energia a partir disso. Tem também muitos nutrientes que podemos usar para a agricultura. E a própria água, que pode ser reciclada.”
Começamos a ver oportunidades nestas águas residuais e a encarar o sistema não apenas como de tratamento de água residuais, mas como uma “máquina que produz energia e nutrientes” – “a concepção destes sistemas está a mudar, talvez a água passe a ser um produto secundário e o objectivo principal seja a produção de energia.”
Outra mudança de mentalidade importante é a que nos leva a pensar em sistemas mais curtos. “A água é pesada e transportá-la sai caro. Por isso está-se a pensar em ir buscá-la o mais perto possível do local onde vai ser consumida. E isso tem implicações em toda a concepção da cidade”. Integrar estas novas formas de pensar na formação de arquitectos e engenheiros é fundamental, mas também é importante que “os tipos da água”, como Kala se refere a si próprio e a outros especialistas na gestão de recursos hídricos, sejam envolvidos cedo no processo.
“Há uma tendência para sermos vistos como os canalizadores”, diz, ironizando. “Os urbanistas e arquitectos desenham as cidades e nós entramos e, com as canalizações, seguimos o traçado das estradas. Pode não ser a melhor concepção, mas não temos escolha”, explica. Daí a importância desse conhecimento especializado ser integrado no planeamento numa fase inicial.
Estes modelos mais curtos implicam a recolha de águas da chuva, por exemplo, em reservatórios mais pequenos, mais locais, e não apenas em grandes barragens. Num outro texto do The New York Times sobre a crise da água, Meera Subramanian, autora de A River Runs Again, sobre os problemas ambientais na índia, critica a aposta em “grandes estruturas de des- salinização e megabarragens”: “O primeiro- ministro, Narendra Modi, prometeu água canalizada para todos os indianos em 2024. O Governo da índia poderia atingir esse objectivo olhando para lá dos limites cinzentos do cimento, para o verde dos poderosos sistemas de água natural que funcionaram no passado e poderiam funcionar novamente. O foco do Governo de Modi em grandes projectos é problemático porque transportar água funciona apenas se houver água para transportar.”
Outra solução que começa a ser adoptada em cada vez mais países é a da dessalinização. Mas também essa tem problemas, sendo o custo elevado um dos principais. Kala Vairavamoorthy, que se prefere centrar nas soluções e não se deixar abater pelas dificuldades, considera que o caminho passa por um “portefó- lio de soluções”.
Dá como exemplo o caso de Singapura. Até há pouco tempo inteiramente dependente de um país vizinho, a Malásia, para o seu abastecimento de água, Singapura quis combater essa fragilidade e criou um plano hídrico a longo prazo. A base do sucesso tem mais a ver com uma política para a água do que propriamente com a tecnologia, explica um perito no tema citado num trabalho da agência Kyodo News.
O acordo entre Singapura e a Malásia deverá terminar em 2061, o que provocou grande insegurança, levando à urgência de encontrar alternativas. Neste caso, o “portefólio de soluções”, resumido no texto da Kyodo News, passa por quatro “torneiras nacionais”: as bacias hidrográficas locais, a chamada Nová- gua, que é reciclada a partir das águas residuais, a dessalinizada e a importada da Malásia. Conforme as disponibilidades e as necessidades, o Governo recorre mais a uma ou a outra destas fontes.
Este esforço para enfrentar o problema faz com que estejam hoje baseadas em Singapura mais de 180 empresas ligadas à água, e mais de 20 centros de investigação sobre o tema. “Não escolheria a dessalinização como primeira opção”, comenta Kala, “mas tê-la como possibilidade é bom”. Esta levanta, contudo, um outro problema: os resíduos do processo de dessalinização (água com grande concentração de sal), são geralmente enviados de novo para o mar, o que altera o equilíbrio deste e pode ter consequências ambientais indesejadas.
Mas, independentemente de se multiplicarem as fontes de fornecimento de água, é muito importante conseguir-se separar a água disponibilizada aos habitantes das cidades por níveis de qualidade. E isso leva-nos à questão do preço. Faz sentido cobrar o mesmo pela água que bebemos e por aquela que nos enche o autoclismo? O problema é que, como vimos, é exactamente a mesma água.
Água e luta de classes
O que fazer, então? Subir o preço de toda a água, para que as pessoas compreendam que se trata de um bem precioso? “Essa é uma questão que tem que ter em conta o contexto específico”, responde Kala. “Há desafios locais e uma diversidade nas populações.” Voltemos ao exemplo de Chennai. Segundo o texto de Meera Subramanian, as classes média e média/alta têm a possibilidade de pagar – e estão a pagar o dobro do que antes da crise – para receber água dos camiões-cister- na ou para cavar poços mais fundos para chegar aos aquíferos.
A crise da água é um palco perfeito para a luta de classes. Também aqui, os pobres são, de longe, os mais afectados e o tema tem potencial para explodir em questões políticas e profundas tensões sociais. O que se passou em 2018 na Cidade do Cabo é um bom aviso relativamente ao que se pode vir a passar num futuro com muito menos água disponível.
Com as suas reservas em queda, a Cidade do Cabo lançou o alerta: o Dia Zero, aquele em que supostamente deixaria de haver água, estava a aproximar-se a uma velocidade alarmante e ia ser preciso tomar medidas. O Dia Zero nunca chegou, mas, por causa dele, “o governo local aplicou uma agenda de poupança de água mais ambiciosa do que qualquer outra coisa que o mundo tivesse visto”, relata um artigo da revista The Atlantic.
Foram estabelecidos vários níveis de poupança: logo em 2017 as restrições tinham o nível 4 e impunham um limite de 100 litros por pessoa por dia, proibiam a rega com água potável e outros tipos de usos lúdicos. Foram posteriormente actualizadas para o nível 4b, que passava os 100 litros para 87, com recomendações com reduzir o tempo do duche para dois minutos. Outros níveis reduziam ainda mais o limite e restringiam, por exemplo, a utilização de água na agricultura.
A par destas medidas, campanhas contra o desperdício de água e incentivos a que os excessos fossem denunciados criaram um mal- estar que se manifestou em protestos e críticas ao Governo, passando, inclusive, por tentativas de descredibilizar a ideia de que haveria um Dia Zero. “Os problemas sociais e políticos da Cidade do Cabo durante a crise da água”, lê-se na The Atlantic, “resumiram-se às mesmas questões fundamentais que marcaram o seu passado como cidade icónica do apartheid: brancos versus negros; pobres versus ricos”. E, no entanto, as medidas, duras ou não, contestadas ou não, tiveram um efeito: a crise foi, se não ultrapassada, pelo menos adiada. O Dia Zero ainda não chegou.
Mas enquanto alguns países lidam diariamente com esta nova realidade, outros ignoram totalmente o assunto. O mesmo artigo da Atlantic refere alguns números relativos aos Estados Unidos: cada americano gasta em média 340 litros de água diariamente, em actividades como beber, lavar os dentes, tomar banho, descarregar o autoclismo e lavar a roupa (não contando com a água necessária para a produção dos alimentos que consome, por exemplo).
Os habitantes da Cidade do Cabo gastavam, antes da crise, cerca de 200 litros por dia e conseguiram uma redução para os 125. Segundo dados da Agência Portuguesa do Ambiente, os portugueses consomem em média 187 litros por dia (o consumo doméstico é de 124), sendo os lisboetas os que mais gastam no geral (281 litros) e os habitantes de Évora os que tem o mais elevado consumo doméstico (175 litros).
Instalar mecanismos que, facilmente, permitam às pessoas saber quanta água estão a gastar e comparar com vizinhos e amigos pode ajudar, diz Kala. “É uma questão difícil porque existe a ideia de que a água é de graça. Mas a água que chega às nossas casas não é gratuita, passou por uma série de processos, só que, por razões políticas, não a queremos vender ao seu real valor e por isso é altamente subsidiada”.
Torná-la no geral mais cara não é uma solução, até porque, “como vivemos em sociedades diversas, precisamos de ter mecanismos para encorajar, sobretudo os mais pobres, a usar tanta água quanta necessitam”. O que se pode fazer, descreve o especialista, é usar “tarifas por blocos”, em que se cobra X para a água considerada suficiente para as necessidades básicas, subindo o preço a partir daí se os consumidores excederem esse limite.
São diferentes medidas que podem representar respostas a um problema que dá sinais de ganhar uma urgência cada vez maior. Apesar de 70% da superfície da terra ser água, menos de 3% dessa água é doce. As previsões das Nações Unidas indicam que em 2030 a procura de água doce poderá ultrapassar em 40% a oferta. Antes disso, em 2025, cerca de 1,8 mil milhões de pessoas estarão a viver em áreas afectadas pela falta de água e dois terços da população mundial em regiões com stress hídrico.
Neste momento, quando abrimos as torneiras das nossas casas e a água corre sem restrições (e a um preço ainda relativamente barato), esse futuro pode-nos parecer demasiado longínquo para que tenhamos que nos preocupar com ele. Mas os cenários da ONU são para dentro de cinco e dez e, desse ponto de vista, não parece cedo para pensar mais a sério nestas questões.
Em Chennai, este Verão, o The New York Times encontrou pessoas desesperadas à espera da chegada dos camiões-cisterna (9000 por dia do município, mais 5000 de empresas privadas) e a tomar banho com a água recolhida dos pingos que ao longo do dia vão caindo dos aparelhos de ar condicionado.
“É importante voltar a envolver as pessoas espiritualmente com a água porque a partir daí o comportamento delas muda”, acredita Kala Vairavamoorthy. Hoje, quando abre a torneira, a água corre livremente, mas ele não esquece as noites na índia, em que o ruído nas canalizações anunciava finalmente que, às vezes ao fim de dias, ela estava de volta. Nunca se sabia por quanto tempo.