Do regulador do sector, às empresas de gestão de resíduos, passando pelos ambientalistas da Zero, levantam-se críticas a um despacho do Governo que é visto até como “inconstitucional”
Abel Coentrão O Ministério do Ambiente pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, para perceber se pode haver alguma ilegalidade no despacho do secretário de Estado João Ataíde das Neves, que entregou aos sistemas de gestão de resíduos em alta, com destaque para o gigante EGF, do grupo Mota-Engil, a recolha selectiva dos resíduos orgânicos, ou biorresíduos. A medida vai contra o parecer da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), das empresas privadas que prestam esses serviços de recolha às câmaras que vêm nela uma violação dos princípios da concorrência e tem também a oposição dos ambientalistas da Zero, que a consideram perniciosa para o cumprimento das metas para o sector.O despacho em causa, publicado a 16 de Agosto, foi dado a conhecer na semana passada pelo presidente da ERSAR, Orlando Borges, que no programa Sexta às 9, da RTP, assumiu oposição frontal a esta decisão, tomada, na sua perspectiva, contra aquilo que é descrito no contrato de concessão assinado aquando da privatização da antiga Empresa Geral de Fomento, em 2014. Considerando estar em causa uma situação de favorecimento a um grupo económico e a violação das normas da concorrência, o presidente da ERSAR enviou a sua posição à Autoridade para a Concorrência e afirmou ter feito uma participação ao Ministério Público, pedindo que desencadeasse procedimentos com vista à anulação do despacho. Foto Em causa está um negócio que, nas contas da Associação que representa empresas deste sector, a AEPSA, pode valer no mínimo 60 milhões por ano, ou muito mais, dependendo da fracção de de biorresíduos que o país venha a conseguir recolher selectivamente nos próximos anos, para cumprir as exigentes metas europeias que obrigam os Estados-membros a reciclar uma fracção cada vez maior do lixo que produzem. Eduardo Marques, presidente desta entidade, não aponta directamente à EGF, detentora de uma quota de 60% do mercado de tratamento em alta de resíduos, mas acusa o Governo de prejudicar as entidades que alimentam esses sistemas, em baixa, recolhendo, para os municípios, os resíduos que produzimos em nossas casas, e os cidadãos, que pagarão tarifas mais altas por esse serviço, avisa.
Despacho inconstitucional?
Para além de uma eventual violação dos princípios da concorrência que o Governo nega existir a AEPSA e outra associação, a Smart Waste, presidida pelo autarca Aires Pereira, da Póvoa de Varzim, consideram que o ministério limitou, com um mero despacho, a esfera de competências dos municípios. Uma interpretação que, a ser confirmada, poderia, como pedem, levar a que o diploma fosse considerado inconstitucional. As autarquias têm, desde sempre, assumido ou concessionado a recolha do lixo, incluindo esta fracção orgânica, lembra o social-democrata, respaldado na posição da própriaERSAR.O despacho governamental consegue fazer o pleno das críticas, já que também os ambientalistas da Zero se atiram a ele, pelos seus eventuais efeitos no cumprimento das metas de reciclagem. Paulo Lucas, membro desta associação, considera errado entregar o exclusivo da recolha selectiva a uma empresa que lucra com as tarifas que os municípios lhe pagam pelo lixo indiferenciado. A Zero teme que, se na área da EGF, a aposta recair num sistema de ecopontos, em vez da recolha porta-a-porta dos orgânicos, o país falhe as metas para este tipo de resíduos e ponha em causa os seus compromissos europeus. “Na prática, o Governo, através de um Despacho, altera o regime de concessão e reforça o monopólio de uma empresa privada, fazendo aumentar os custos com a adição de mais uma recolha às duas já existentes – a do [lixo] indiferenciado, efectuada pelos Municípios, e a das embalagens (plásticos/metais, papel/cartão, vidro) por via dos ecopontos, efectuada pelas empresas EGF aumentando as receitas da mesma e os custos para os munícipes e os Municípios. A Zero não só defende a revogação do despacho, tal como a ERSAR e a AEPSA, como exige “que sejam alteradas as condições da concessão concedida à EGF até 2034, para permitir que a recolha selectiva e indiferenciada dos resíduos urbanos fique na responsabilidade dos Municípios, no sentido de aumentar a eficiência do sistema (em termos económicos e ambientais)”.
EGF “está a assumir uma responsabilidade”
Já na semana passada, à RTP, a EGF negava que o teor do despacho lhe garanta uma qualquer situação de “privilégio”, considerando, pelo contrário, que está é a “assumir uma responsabilidade perante o Estado”, que é o concedente do serviço público que o grupo presta. Aliás, o próprio ministério segue esta mesma linha de argumentação, explicando ao PÚBLICO que “o despacho, incidindo só sobre os sistemas que são do Estado (enquanto concedente), clarificou que a EGF é obrigada a assegurar as metas de reciclagem agora para o novo fluxo de resíduos diferenciados biorresíduos”. Aliás, a tutela garante que o despacho “é determinante para o cumprimento” desses objectivos a que Portugal se encontra obrigado, razão pela qual não o pretende revogar.Mas esta leitura não é, como se viu, benevolamente encarada por outros actores no terreno. Aires Pereira nota que, com esta medida, o Governo está a dar acesso à EGF a fundos comunitários destinados a apoiar investimento na recolha selectiva, a grande prioridade do novo plano nacional para o sector. E nem o facto de o despacho prever que, o grupo possa passar essa atribuição, e os investimentos, para as câmaras das áreas onde opera por via de protocolo – uma alínea que segundo a tutela foi sugerida, após consulta, pela Associação Nacional de Municípios – deixa o autarca da Póvoa de Varzim descansado. A opção do Governo, diz, reforça a posição do grupo em que os municípios têm uma posição minoritária (44%) face aos dois accionistas privados, a Mota-Engil (34,43%) e os espanhóis da Urbaser (21,55%). Em esclarecimentos enviados ao PÚBLICO, o grupo contrapõe a esta torrente de críticas que “a actividade de recolha selectiva de biorresíduos já é desenvolvida pelas concessionárias desde 2005”. “Representa hoje 17% da recolha selectiva realizada pelas empresas EGF”, insiste, notando que “cerca de 9% da energia exportada para a rede nacional pelas empresas do Grupo EGF provém deste tipo de recolha selectiva, bem como cerca de 30 mil toneladas de correctivos orgânicos” produzidos em três centrais de compostagem. Explica ainda que, antes do despacho, já vira aprovadas 10 candidaturas a fundos comunitários, em parcerias com municípios, para incrementar este tipo de recolha, até porque, reforça, “as empresas da EGF são responsáveis por assegurar o cumprimento das metas, por isso são também responsáveis por assegurar a actividade necessária ao cumprimento desse objectivo”.Por outro lado, aEGF assume total discordância com o papel do regulador do sector. “Nos termos da lei, dos contratos de concessão e do regulamento tarifário, a tarifa definida pelo regulador deve cobrir os custos e investimentos associados à actividade das concessionárias, sendo o regulador expressamente responsável por assegurar a respectiva sustentabilidade económica e financeira (…). Infelizmente, as concessionárias têm vindo a ser confrontadas com decisões do regulador que expressa e comprovadamente colocam em causa este seu dever legal (e o correspectivo direito das empresas)”, acusa o grupo. Continuar a ler