Vídeo em que lixo comum e diferenciado é colocado no mesmo camião pode ter quebrado a “confiança dos portugueses” // Câmara justifica que resíduos estavam contaminados
Lisboa. Zero acusa câmara de criar dúvidas quanto à reciclagem
Vídeo gerou controvérsia porque a câmara juntou lixo indiferenciado e diferenciado no mesmo contentor. Ambientalistas falam da necessidade de fiscalização.
Nos últimos tempos, um vídeo que mostra um grupo de trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa (CML) a recolher lixo diferenciado e indiferenciado usando o mesmo camião gerou grande polémica entre os internautas. Além das críticas nas redes sociais, também os moradores da Rua Inácio Pardelhas Sanchez, em Campolide, se têm queixado do trabalho da equipa de recolha de lixo desta autarquia – que justifica a situação com o facto de o lixo separado estar contaminado, adiantando que é algo que tem acontecido com cada vez mais frequência. O Movimento Zero acusa a autarquia de criar dúvidas e desconfiança na população.
O caso foi filmado por um automobilista: na rua podem ver-se contentores para deposição de resíduos indiferenciados, bem como contentores destinados à separação de resíduos, ou seja, à reciclagem. Mas a equipa da Câmara Municipal de Lisboa coloca todo o tipo de lixo no mesmo camião, não existindo qualquer separação
“Andam as pessoas a reciclar para depois ver isto”, diz o autor do vídeo que circula nas redes sociais, adiantando: “Isto não devia ser surpresa para ninguém, já é assim há anos e por todo o lado”. E nos comentários são vários os relatos de pessoas que afirmam já ter presenciado este tipo de situações muitas vezes.
Na publicação original, feita na página de Facebook Clube TDI, a Câmara Municipal de Lisboa reagiu com a seguinte resposta: “Nesta situação foi detetada uma contaminação (mistura de resíduos) nos contentores de reciclagem. Quando isto acontece, a recolha passa a ser indiferenciada. Ou seja, existem duas equipas de recolha envolvidas neste processo. A primeira é exclusivamente dedicada à recolha de ecopontos, e a segunda ao lixo comum”.
A autarquia clarificou ainda: “O que o vídeo não mostra é que, antes desta recolha, os cantoneiros dos recicláveis dete- taram (porque é essa a função deles) que existiam sacos com lixo comum junto com o papel e outros materiais. Essa ‘contaminação’ era em tal volume que simplesmente impossibilitava que este material pudesse ser reciclado”.
ZERO FALA DE DESCREDIBILIZAÇÃO DA
RECICLAGEM NO VÍDEO Susana Cardoso, membro da direção da Associação Zero, explica ao i que o movimento teve conhecimento do primeiro vídeo e que questionou prontamente a câmara. A autarquia referiu igualmente a “grande contaminação detetada pela equipa que já lá tinha passado”.
Com base nessa resposta, a Associação Zero considerou que a abordagem da câmara “foi a pior possível”. “Bem que podem existir campanhas de sensibilização que aquele vídeo vai chegar mais longe e terá sempre um impacto maior”, refere Susana Cardoso.
Segundo a representante da Associação Zero, este vídeo “cria nas pessoas, mesmo nas mais motivadas para este tema, a dúvida”. “As pessoas questio- nam-se sobre o que será feito com o seu esforço de reciclar”, adianta. “Este vídeo acaba por destruir um pouco a confiança que nós depositamos ao depositar as embalagens no ecoponto. Temos a confiança que alguém vai pegar nas embalagens e vai levá-las para um local onde vão ser reutilizadas”, explica.
Susana Cardoso frisa ainda a solução apresentada pela Zero à Câmara Municipal de Lisboa para este tipo de situação: “Se há contaminação no fluxo, têm de identificar a fonte da contaminação. Obviamente, algumas pessoas podem enganar-se e ter colocado resíduos nos sítios errados, mas não são todos. Esse tipo de fiscalização tem de ser feito e os cidadãos têm de se habituar a que têm de colaborar, porque a sociedade é de todos. Se não colaboram e ainda prejudicam o trabalho dos outros, devem ser penalizados por isso”.
CÂMARA RESPONDEU TAMBÉM EM VÍDEO
A Câmara de Lisboa conclui que quando isto acontece, e segundo refere “é algo comum, infelizmente”, os contentores “são sinalizados para recolha pela equipa dos indiferenciados (e é isso que se vê no vídeo)”. “É do interesse da CML e da cidade que os valores de material recolhido e aceites pela Valorsul para reciclagem sejam elevados. Este procedimento é o correto e o que é utilizado neste tipo de sistemas de recolha”, acrescenta Na terça-feira, com vista a responder às várias questões levantadas por esta situação da recolha dos dois tipos de lixo pelo mesmo camião, a Câmara Municipal de Lisboa publicou um vídeo explicativo na sua página oficial do Facebook.
A autarquia deixa a mensagem de que um “maior civismo de cada um de nós significa melhor ambiente para todos” e que, diariamente, 1013 homens e mulheres contribuem para que Lisboa seja uma cidade cada vez mais limpa”. A câmara conclui o vídeo fazendo um apelo para que a população “separe os seus resíduos e os coloque nos locais certos”.
Contudo, em resposta, foram vários os internautas a mais uma vez deixar duras críticas à atuação da Câmara Municipal de Lisboa, dizendo mesmo que o intuito deste vídeo era “descredibilizar o outro vídeo que aí anda a circular pelas redes sociais”, ou a questionarem mesmo o porquê de “não haver pessoal que separe o lixo dos contentores recolhidos”.
FALTA DE CIVISMO DE UNS INFLUENCIA OS OUTROS Ao i, fonte oficial da Câmara Municipal de Lisboa explicou que os trabalhadores desta equipa, “quando estão a recolher resíduos diferenciados, como papel ou plástico, e detetam que o contentor está cheio de matérias orgânicas ou de outra natureza, não levam esse material e sinalizam a ‘contaminação’ desse contentor. No dia seguinte, quando se fizer a recolha de material orgânico, a equipa que faz esse percurso leva esse material impróprio para ser reciclado”.
Apesar de não ter respondido ao i quantos casos de contaminação são registados por mês, a mesma fonte refere que é muito usual estas equipas encontrarem resíduos contaminados, daí haver denúncias frequentes deste ti|K» de ação. “É recorrente que alguns cidadãos misturem plásticos com papel e papel com lixo, tudo no mesmo espaço. A partir de uma certa percentagem, quando os resíduos não estão separados, torna-se impossível fazer a reciclagem. Este comportamento pouco cívico coloca não apenas em causa os profissionais da higiene urbana como, acima de tudo, o esforço de separação de lixos e reciclagem feito pela maioria dos lisboetas”.
Portugueses produzem cada vez mais lixo e reciclam pouco. Este ano não será exceção
Dados da Agência Portuguesa do Ambiente mostram que Portugal produziu mais 200 mil kg de lixo em 2018 que em 2017. Além disso, é dos países que menos reciclam entre os membros da União Europeia.
Os portugueses estão a produzir cada vez mais lixo, mas o aumento da recolha de resíduos diferenciados não acompanha o crescimento da produção. Os números são da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e refletem a evolução até 2018. E, apesar de os dados oficiais de 2019 ainda não estarem consolidados, a Associação Zero diz ao í não acreditar que haja qualquer melhoria substancial este ano.
No Relatório do Estado do Ambiente (REA), realizado anualmente pela APA, verifica-se que no ano passado se produziram cerca de 4,94 milhões de toneladas de resíduos urbanos (RU) – quase meia tonelada por português. Ora, isto representa um crescimento de 4,2% face a 2017, quando se produziram cerca de 4,75 milhões de toneladas (cerca de 200 toneladas de lixo a mais de 2017 para 2018).
Segundo a APA, este aumento estará “relacionado com uma melhoria da situação económica de Portugal, o que parece indicar não estar a ser atingido o objetivo de dissociar a produção de resíduos do crescimento económico”. A quantidade de lixo total e produzida por cada habitante tem vindo a aumentar desde 2013, ano em que atingiu o seu ponto mais baixo na última década, com cerca de 4,36 milhões de toneladas de resíduos urbanos produzidos.
Ao nível da recolha de resíduos urbanos em Portugal verificou-se que em 2018 se recolheu mais 2% de resíduos diferenciados que no ano anterior, fixan- do-se nos 18,1%, face aos 79,9% de recolha de resíduos indiferenciados. Apesar do aumento da recolha de resíduos para reciclagem, não se verificou uma diferença significativa, prevalecendo a recolha de lixo indiferenciado para a grande maioria dos resíduos recolhidos pelos municípios.
De resto, o “aumento da qualidade e quantidade dos resíduos recicláveis recolhidos seletivamente é um objetivo da política de resíduos”, evidenciado no Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU) 2020. A APA refere que, apesar do “esforço significativo de aumento do número de infraestruturas de recolha seletiva”, não têm existido “reflexos proporcionais nos quantitativos recolhidos seletivamente”.
Há ainda que ter em conta que o PERSU 2020 definiu um conjunto de medidas ambiciosas para Portugal como, por exemplo, “alcançar uma redução mínima da produção de resíduos por habitante de 10% em peso relativamente ao valor verificado em 2012, até 31 de dezembro de 2020” – valores que estão bastante distantes do que se verifica atualmente.
COMPARAÇÃO COM OUTROS PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA Ao nível da quantidade de resíduos produzidos e da taxa de reciclagem, o caso português adquire ainda mais relevância quando se têm em conta os restantes membros da União Europeia. Portugal encontra-se quase no fundo da lista dos países com maior taxa de reciclagem de resíduos municipais.
Segundo o Eurostat, em 2017, Portugal encontrava-se em 20.” lugar na lista dos países da União Europeia com maior taxa de reciclagem dos resíduos municipais, com 28,4%, bem abaixo da média comunitária, que está fixada nos 46,4%.
Este valor verificado no ano de 2017 em Portugal representa um crescimento de quase 300% face ao verificado em 1995, quando apenas 9,7% dos resíduos municipais foram reciclados.
Atrás dos portugueses ficavam apenas Croácia, Letónia, Chipre, Roménia e Malta – não há dados relativos à Grécia, Irlanda e Reino Unido. Malta aparece em último na lista, com apenas 6,4% dos resíduos municipais a serem reciclados nesse ano – o que representa inclusive um decréscimo neste país, se tivermos em conta que, em 1995, 13,7% dos resíduos municipais foram reciclados.
Na ponta oposta da lista aparecem Alemanha, Eslovénia, Áustria, Países Baixos e Bélgica, todos eles com mais de 53% dos resíduos municipais a serem reciclados em 2017. O caso esloveno é de destacar, uma vez que o país passou de reciclar apenas 2% dos resíduos municipais em 1995 para reciclar 57,8% em 2017, ocupando o segundo lugar desta lista.
ZERO NÃO ESPERA MELHORIAS Apesar de não existirem ainda números consolidados de 2019, ao i, Susana Fonseca, membro da direção da Associação Zero, considera que “dado que não tem havido nenhum esforço da parte do sistema de gestão e do Governo central na promoção de estratégias de redução e reutilização, e uma vez que a retoma económica se mantém, podemos antever que se manterá esta tendência de crescimento ao nível da produção de resíduos urbanos”.
Susana Fonseca explica que nos últimos anos houve alturas em que os portugueses diminuíram a produção de resíduos, alertando para que esses períodos coincidiram com os anos da crise, em que “havia menor consumo”: “As pessoas consumiam menos porque tinham menos poder de compra”. “Assim que o poder de compra foi retomado, as pessoas retomaram os seus hábitos e não houve nenhuma, ou quase nenhuma, mudança estrutural, nem em termos pessoais, nem em termos centrais ou locais. Não houve promoção de iniciativas e, assim, temos este cenário de maior produção de resíduos, em que não há também grandes mudanças ao nível da reciclagem”.
A representante da Zero considera que Portugal “continua a insistir nos ecopontos, que é um modelo com muitas limitações”. Dá o exemplo de outros países europeus, que fazem recolha porta a porta, e reforça que “não é expetável que usando sempre os mesmos métodos se consigam resultados diferentes”.
Susana Fonseca considera as metas estabelecidas como “brutais” e explica que “estamos muito longe delas”.
“Não conseguiremos alcançá-las se não mudarmos a forma como facilitamos a vida ao cidadão ao nível da recolha de resíduos e como incentivamos a participação nestes temas. Se não incentivarmos a participação e se não existirem mudanças estruturais ao nível das políticas, a situação não vai melhorar”, conclui.
Que medidas vêm aí para a reciclagem?
Algumas medidas para os próximos anos:
Até 1 de janeiro de 2025, os Estados-membros estabelecem a recolha seletiva para os têxteis
Até 1 de janeiro de 2025, os Estados-membros estabelecem a recolha seletiva das frações de resíduos perigosos produzidos pelas habitações
Sacos ultraleves – Os estabelecimentos comerciais ficam impedidos de disponibilizar sacos de plástico ultraleves para embalamento primário ou transporte de pão, frutas e legumes, e de vender estes mesmos produtos acondicionados em cuvetes descartáveis que contenham plástico ou poliestireno expandido, a partir de 1 de junho de 2023
A partir de 1 de janeiro de 2022 é obrigatória a existência de sistema de depósito de embalagens de bebidas em plástico, vidro, metais ferrosos e alumínio com depósito não reutilizáveis
A partir de setembro de 2022, o comércio a retalho não poderá utilizar e disponibilizar louça de plástico de utilização única
Até 3 de julho de 2021, os Estados- membros proíbem a colocação no mercado dos produtos de plástico de utilização única
Os Estados-membros asseguram que, até 31 de dezembro de 2023, os biorresíduos são separados e reciclados na origem, ou são recolhidos seletivamente e não são misturados com outros tipos de resíduos
Portugal tem vindo a produzir cada vez mais lixo desde o ano de 2013. Em 2018 foram quase cinco milhões de toneladas