O país terá de investir 85 mil milhões de euros a mais até 2050 para “zerar” o seu saldo de emissões poluentes. A maior parte do dinheiro virá das famílias e empresas privadas.
Ana Brito Quando os líderes mundiais se reunirem na próxima semana nas Nações Unidas para discutir as medidas necessárias para cumprir o acordo de Paris, o financiamento da descarbonização das economias será um dos temas incontornáveis do debate. A discussão sobre como se conseguirão os muitos milhões que os países necessitam para travar as emissões poluentes faz-se neste momento em todas as geografias. Em Bruxelas aprovou-se no ano passado um Plano de Acção para Financiar o Crescimento Sustentável que, na prática, nos próximos anos, irá criar regras para estimular (e compelir) o sector financeiro a emprestar dinheiro aos projectos verdes. A premissa é simples: os recursos públicos disponíveis não são suficientes, o dinheiro para a descarbonização terá de vir também do financiamento privado.Para Portugal, as contas apresentadas pelo Governo apontam para a necessidade de investimentos adicionais de 85 mil milhões de euros de modo a cumprir o objectivo de atingir a neutralidade carbónica até 2050, reduzindo as emissões de gases com efeito de estufa em mais de 85% face a 2005. O valor consta do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050) e será apenas “uma fracção” dos investimentos que “a economia portuguesa terá de fazer ao longo do tempo por forma a manter-se competitiva”. Segundo o documento, o valor global agregado de investimento até 2050 será de cerca de um bilião de euros e destes, cerca de 930 mil milhões “serão realizados em qualquer caso em resultado da dinâmica normal da modernização da economia”, que tenderá, em virtude das políticas já em vigor, para uma diminuição das emissões, mas que não atingirá a descarbonização plena sem um esforço suplementar.Este “investimento adicional necessário para atingir a neutralidade carbónica” rondará os 85 mil milhões e concentrar-se-á essencialmente no sistema energético, não só no que toca à produção eléctrica e às refinarias, mas também aos consumos, seja nos edifícios, transportes ou indústria, que no conjunto representam quase 80% das emissões poluentes.Assim, descarbonizar a economia nas próximas três décadas exigirá um esforço anual adicional entre 2100 a 2500 milhões de euros (cerca de 1,2% do PIB), que será essencialmente suportado pelas empresas e pelas famílias: “O sector privado e os agregados familiares serão responsáveis pela vasta maioria dos investimentos”, refere o documento, que foi publicado em Julho sob forma de Resolução do Conselho de Ministros.As empresas terão de apostar, por exemplo, em energias renováveis, em camiões a hidrogénio, e em fornos e caldeiras eléctricos para produzir, de forma mais sustentável, produtos mais amigos do ambiente. E as famílias terão de destinar parte dos seus orçamentos à compra desses novos produtos, como electrodomésticos eficientes ou automóveis eléctricos, terão de isolar as suas habitações ouconverterem-se elas próprias em produtores de electricidade solar. Ao Estado competirá, entre outras tarefas, reforçar o transporte público eléctrico e descarbonizar os edifícios e as frotas automóveis das várias administrações.Olhando para as estimativas apresentadas para atingir a meta da neutralidade, a adaptação dos edifícios deverá exigir investimentos totais de 480 mil milhões de euros (incluindo 22 mil milhões adicionais para a neutralidade), seguindo-se os transportes (401 mil milhões, dos quais 32 mil milhões para a neutralidade) e a produção de electricidade (80 mil milhões de euros, incluindo 21 mil milhões para a neutralidade). Transformar as linhas orientadoras do roteiro em realidade exige a definição de políticas e a “adaptação do sistema regulatório, fiscal e dos incentivos que proporcionem sinais claros” aos privados para “facilitar os investimentos necessários e evitar activos obsoletos”, reconhece o Governo. Por outras palavras, competirá ao Estado criar o ambiente propício para que cidadãos e empresas façam as suas escolhas orientadas para a descarbonização.Para isso, o Governo conta não só com a preciosa ajuda dos fundos comunitários (“o Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027 será uma das principais fontes de financiamento para a descarbonização na próxima década”), mas também com “um maior envolvimento do sistema financeiro”, em linha com o que está a ser trabalhado ao nível da Comissão Europeia.Os bancos (que em Portugal assinaram, em Julho, com o executivo, uma carta de compromisso para o financiamento sustentável) deverão passar a incluir as alterações climáticas e os temas ambientais na análise de risco dos créditos (deixará de fazer sentido, por exemplo, emprestar capital a projectos que hoje podem ser rentáveis, mas que no futuro deixarão de o ser devido às restrições ambientais e que podem mesmo resultar em perdas financeiras). Aumentar Num futuro próximo até é expectável que os rácios prudenciais (de solidez) das instituições possam de alguma forma passar a estar ligados ao tipo de empréstimos que fazem se elegerem projectos verdes, talvez possam ter rácios mais baixos e ficam com mais capital liberto para novos negócios, se emprestarem a outro tipo de projectos talvez lhes seja exigida uma almofada de capital maior.Orientar os consumidores é precisoMas a origem do dinheiro não é tudo. Júlia Seixas, professora nas áreas da Detecção Remota em Ambiente, e Energia e Alterações Climáticas da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (UNL), coordenou as cinco equipas que produziram os números e metas do roteiro para descarbonizar o país. Explicou ao PÚBLICO que o trabalho incidiu mais sobre a alteração dos processos de produção e não tanto sobre a mudança de hábitos dos portugueses. “Quando se trabalha em cenários futuros temos de fazer assunções, e uma das que fizemos foi que os consumidores adoptarão determinados comportamentos”, afirmou.Mas isso não quer dizer que o processo seja fácil, nem que possa ser feito sem orientação: “Os consumidores, sobretudos os mais jovens, estão disponíveis para mudar comportamentos e alterar padrões de consumo, mas a questão que deve ser colocada é se as pessoas sabem o que hão-de fazer para contribuir para a redução das emissões poluentes”. A professora da UNL considera que se põe “um fardo muito grande em cima de cada consumidor individual, que quase se sente culpado e deprimido por não estar a fazer nada, quando na verdade não sabe bem o que deve fazer”. As políticas deverão estar direccionadas para a alteração de comportamentos, “sobretudo no que diz respeito ao consumo de carne”, e deverão existir campanhas de sensibilização que ajudem o consumidor “a entrar no supermercado e a fazer escolhas mais sustentáveis” a questionar-se, por exemplo, “como é que as mangas chegaram cá e se faz sentido tê-las disponíveis de Janeiro a Dezembro”, exemplifica.Dizendo-se “optimista” com a existência das “linhas orientadoras e com este desígnio nacional” da descarbonização, a bióloga Helena Freitas nota, no entanto, que “apesar de um grande empenho que tornou possível” a definição do roteiro, “houve um certo esmorecimento” que é preciso contrariar.”A urgência do problema devia tornar o papel das entidades públicas mais activo e dinamizador para envolver toda a sociedade portuguesa neste esforço”, salienta a professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (UC), que integra o Conselho de peritos internacionais para a adaptação às alterações climáticas, nomeados pelo comissário europeu Carlos Moedas. “Levar estes temas à prática educativa e ao universo escolar” será fundamental, “pois os jovens estão despertos e motivados e devem ser apoiados nesta transição”, refere a ex-deputada independente pelo PS. Considerando um trunfo para Portugal o facto de se ter Elisa Ferreira como a próxima comissária europeia com a pasta dos fundos estruturais, Helena Freitas entende que será preciso definir o quanto antes “os instrumentos e os incentivos” que poderão ser usados “para capacitar as empresas, a administração local e a sociedade”.”Hoje, algumas iniciativas podem parecer onerosas, mas vão trazer mais crescimento e mais emprego”, sublinha. “Estamos a falar de mais eficiência e mais poupança; as questões da economia circular, o optimizar dos circuitos das matérias-primas, tudo isto trará rendimento à economia”, garante a professora da UC.”A forma como se está a abordar esta transição, seja na energia, seja no sector alimentar ou industrial, é no sentido de ganhar eficiência na produção, promover a inovação e conseguir novos mercados”, sublinha também Júlia Seixas. Defendendo que deve ser feita “uma reflexão” sobre os novos clusters económicos que podem surgir associados à descarbonização, e “começar a direccionar as políticas públicas para esse caminho”, a professora da UNL, destaca que, “se queremos levar a sério o tema das alterações climáticas e da sustentabilidade do planeta, todas as políticas públicas, a económica, a fiscal, a industrial e a de inovação” têm de ir no mesmo sentido. “A neutralidade carbónica não é passar tudo para renováveis, isso não chega, é mudar tudo e para isso têm de se implicar as políticas públicas todas”, frisa.Fazendo a comparação com uma “orquestra que tem de tocar harmoniosamente”, e reconhecendo que é um trabalho “difícil”, a especialista em ambiente garante que a tarefa dos decisores políticos ficaria simplificada se houvesse, “como na Suécia e no Reino Unido, uma lei do clima”, uma espécie de matriz que permitisse avaliar qualquer decisão ou diploma à luz dos objectivos do roteiro para a neutralidade carbónica.Cortar, sequestrar, neutralizar O roteiro que foi executado por especialistas de várias áreas sob coordenação da Agência Portuguesa do Ambiente baliza as trajectórias que o país deverá seguir em sectores chave como a energia, os transportes, os resíduos e a agricultura e florestas para reduzir as emissões de gases com efeitos de estufa (GEE) e, em simultâneo, reforçar a capacidade de sequestro de carbono. O objectivo é que o balanço entre as emissões emitidas e aquelas que se retiram da atmosfera seja nulo até 2050 (o que equivale a uma redução de 60 megatoneladas de CO2). Com tudo isto, espera-se também a redução da dependência energética face ao exterior (dos cerca de 78%, para menos de 20%), mais poupança e um maior equilíbrio da balança de pagamentos.O documento reconhece como “vectores principais e complementares da descarbonização” a redução da intensidade carbónica da electricidade produzida (fim do carvão e do gás natural e primado das renováveis, com uma redução de 99% dos GEE) e a substituição de combustíveis fósseis por electricidade na generalidade dos sectores, ou seja, a electrificação da economia (em 2050, entre 66% a 68% do consumo de energia final será satisfeito por electricidade). Nos transportes, a descarbonização será “quase total” (redução de 98% das GEE) com a electrificação da frota automóvel e a substituição dos combustíveis convencionais pelo uso de hidrogénio e de biocombustíveis avançados. Além disso, a aposta nos transportes públicos e na mobilidade partilhada ajudará a manter o número de automóveis privados sob controlo.Nos edifícios (redução de 96% dos GEE), sejam residenciais ou serviços, espera-se que haja “uma electrificação quase total dos consumos de energia”, além de “grandes ganhos de eficiência energética” graças ao reforço do isolamento e do uso do solar térmico e de bombas de calor.Na indústria admite-se que as reduções “serão menos expressivas” (em torno dos 73%), porque será viável cortar em cerca de 80% as emissões relacionadas com a queima de combustíveis fósseis, mas apenas em 60% aquelas libertadas nos processos industriais, uma vez que há “menos diversidade de tecnologias custo-eficaz disponíveis”.As emissões com origem na agricultura e em particular aquelas da produção animal , têm um potencial de redução menor. Aqui, ao invés do corte na produção de carne bovina que chegou a ser inicialmente proposto, o sector deverá apostar em medidas como “as melhorias na alimentação animal e nos sistemas de gestão de estrume”, que deverão resultar em reduções entre 9% a 30% dos GEE. Considerando as emissões da agricultura como um todo (solos agrícolas e pastagens), o potencial eleva-se para reduções entre 40 a 60%. Quanto aos restantes usos de solo, incluindo as florestas, há a expectativa de que aumentem significativamente os níveis de sequestro de carbono “para valores próximos das 11 a 13 milhões de toneladas”. Mas, para isso, é indispensável que haja menos área ardida e que aumente a produtividade da generalidade das espécies florestais.No sector dos resíduos e águas residuais, o esperado é que as emissões caiam 75% graças a um “forte aumento da circularidade da economia, da eliminação de resíduos orgânicos em aterro e da redução das produções per capita de resíduos total e orgânico”. Continuar a ler