E se ninguém deitasse nada fora, e com esses materiais produzisse coisas novas? O conceito chama-se economia circular e está a crescer, mas precisa de acelerar
Ce tem uma idade de dois dígitos, lembra-se, certamente, de ter visto um anúncio televisivo com o Gervásio, um chimpanzé simpático que aprendia, num instante, a fazer separação de resíduos domésticos. O macaquinho conseguiu aprender a depositar plásticos e metais no contentor amarelo, papel e cartão no azul e os vidros no verde. A moral da história era simples: se ele consegue, porque não consegue o consumidor fazê- -lo em casa? Mais do que tentar humilhar- -nos, comparando as nossas capacidades de aprendizagem com a deste nosso primo
do processo de evolução, a mensagem era clara: separe resíduos em casa.
Não se trata de um capricho ou de mais uma tarefa doméstica a somar a muitas outras. Estes resíduos de objetos familiares, como garrafas de água, cadernos ou jornais velhos, ou aquela garrafa de vinho que serviu para brindar a alguma situação memorável, podem vir a ser objetos novos. O que ganhamos com isso? Um mundo com menos desperdício, uma poupança maior em matérias-primas (cada vez mais escassas) e melhor aproveitamento do território. Afinal, ninguém quer um aterro perto de si.
A Comissão Europeia lançou, no início do ano passado, um roteiro para uma economia circular no nosso continente. É uma espécie de nova tábua de mandamentos para o século que já vai na segunda década, e que compreende não só a separação de resíduos em casa – e nos estabelecimentos comerciais, nos locais de trabalho e nas fábricas – e a correspondente reciclagem, como também uma gestão sustentável da água para consumo humano e doméstico, e novos métodos de produção. Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma: é um cliché estafado, mas pouco praticado. E é mesmo preciso levá-lo à prática.
A ambição é grande: pretende-se reutilizar, refazer, reparar e reciclar produtos, com novo design e usos; e estratégias que estimulem novos padrões de consumo, maneiras diferentes de comprar e usar os produtos. E estes comportamentos devem estender-se às empresas – a economia passa a ser colaborativa, em vez de apenas concorrencial.
Vamos chegar às metas?
É preciso insistir neste ponto: nada do que foi dito antes é um mero caderno de encargos ou um discurso feito no vazio. Para a separação e recolha de resíduos destinados a valorização (uma palavra pomposa que significa, muito simplesmente, que deverão ter novos usos, depois de transformados), há metas definidas.
E o que precisamos para as atingir? É preciso ir aos números do chamado Plano Estratégico para os Resíduos Sólidos Urbanos (PERSU 2020), que são muito claros: até 31 de dezembro de 2020, temos de alcançar uma redução mínima da produção de resíduos por habitante de 10% em peso relativamente ao valor verificado em 2012. Ora, diz a Agência Portuguesa do Ambiente que este decréscimo está longe de ser alcançado e temos agora 18,6% a abater até 2020. Já sabe onde vai cortar este valor? O PERSU 2020 prevê também um incentivo ao aumento da recolha seletiva e da reciclagem, bem como da eficiência dos tratamentos. Até 31 de dezembro de 2020, temos de alcançar um aumento mínimo global de 50% em peso dos resíduos que podem ser preparados para a reutilização e para a reciclagem – o papel, o cartão, o plástico, o vidro, o metal, a madeira e os
resíduos urbanos biodegradáveis.
Mas o PERSU não fica por aqui. Não estaria completo se não considerasse outro problema: a deposição de resíduos é uma opção de fim de linha e, por isso, a meta para o último dia do próximo ano é uma redução de 35% face ao alcançado em 1995.
Com os números atuais, corremos o risco de sermos multados por incumprimento pela Comissão Europeia. Portugal está, aliás, com outros 13 países da União Europeia, na lista dos que precisam de fazer mais no que diz respeito à economia circular. Falámos, por isso, com o Ministério do Ambiente. A resposta veio de Carlos Martins, secretário de Estado do Ambiente, que afirmou, por e-mail, que “Portugal apresenta um posicionamento muito próximo dos valores apurados na média europeia e isso reforça a convicção de que poderemos ultrapassar esta situação pontual a breve prazo”.
As razões para os números modestos dos materiais separados para reciclagem no nosso país têm, para o governante,
três razões fundamentais. Por um lado, “o comportamento dos cidadãos não se traduz num incremento de quantidades depositadas nos ecopontos e, portanto, mesmo que todo o sistema esteja dotado das soluções adequadas, não se atingem os objetivos”.
Por outro, há o problema de sempre, o orçamento: “O facto de Portugal ter conhecido um atraso de dois anos na disponibilização de fundos estruturais europeus para investimentos no setor determinou, em alguns casos do território nacional, uma limitação ao reforço do número de ecopontos instalados e da capacidade de triagem”.
Um novo modelo de gestão destes assuntos também contribuiu para o compasso de espera: “Só em 2017 foi, pela primeira vez, criado um quadro institucional de intervenção das múltiplas entidades gestoras de embalagens, que num primeiro momento introduziram dificuldades de articulação
e provocaram limitações ao empenho para superação das metas”.
Um monte de resíduos
Portugal já beneficiou de um adiamento, há dez anos, para conseguir chegar aos limiares definidos na altura. Em 2017, a nossa produção total de resíduos urbanos foi de aproximadamente 5 milhões de toneladas, o que corresponde a 484 kg por habitante por ano. Ou seja, por dia, cada português produz 1,32 kg de lixo. Há um ligeiro aumento, gradual, desde 2014, que interrompeu a tendência de decréscimo que se verificava desde 2010. Os valores de 2012, por isso, estão longe das metas…
Este aumento parece estar relacionado com o início da saída da crise e da espiral de cortes financeiros a que o País esteve sujeito. E a nova moral da história poderá ser simples: não parecemos estar a atingir o
objetivo de dissociar a produção de resíduos do crescimento económico.
Temos conseguido, nos últimos anos, reciclar um pouco mais, mas de uma forma um pouco errática. Já alcançámos uma marca interessante, de 62% de resíduos reciclados, em 2016… No entanto, os dados da Agência Portuguesa do Ambiente não são muito animadores no conjunto. Para metas de 60% de reciclagem de vidro, o melhor que alcançámos foram alguns momentos de resvés. Entre 2011 e 2012 tocámos no limiar, e até 2016 houve uma pequena mon- tanha-russa no gráfico, entre os 55 e os 59 por cento.
O plástico, contra o qual se iniciou uma guerra sem quartel por toda a Europa, com taxas sobre sacos e várias recomendações para a sua redução, tem registado uma subida nos números da reciclagem. Em 2004 só valorizávamos 11% do nosso plástico. Em 2016, essa percentagem subia para os 42%, e ultrapassava a meta dos 22,5 pontos percentuais. Mas, tendo em conta que a meta vai subir para os 50%, estamos, mais uma vez, atrasados. O nosso melhor comportamento tem sido com a reciclagem do papel e do cartão, embora com a mesma tendência de montanha-russa: dos impressionantes 88% conseguidos há dez anos, caímos para 62% em 2015, para recuperarmos até aos 70% em 2016.
O plástico é uma fénix renascida
É melhor dar exemplos neste ponto. Até porque ainda é pouco visível, para os consumidores, que vantagens palpáveis podem ter com a reciclagem ou com o reaproveitamento do que antes consideravam “lixo”.
Imaginemos uma garrafa de água, de tamanho médio. É feita de plástico, o material que parece ser o mais versátil. Quando a depositamos no ecoponto, não desaparece deste mundo, nem se desintegra. É aí que começa um percurso longo, que a leva a uma central de triagem, onde é separada, manualmente, dos outros resíduos recicláveis (normalmente, o metal, o papel e o vidro, que serão reencaminhados para outras funções).
A partir daí, chega a fase da compactação, juntamente com outras garrafas/embalagens do mesmo tipo de plástico, de detergente, de refrigerante, e quase tudo o que a sua imaginação pode alcançar em termos do que usa lá em casa nestes materiais (e, pode crer, é mesmo muita coisa).
Reproduzimos este trajeto na página 14. Os resíduos de plástico, depois de compactados, passam por uma centrifugação, e uma fase de trituração, centrifugação e transformação num material muito pequeno, com o aspeto de grãos, ou bolinhas. São polímeros, que depois vão ser vendidos
em quantidades específicas e em cores diferentes, de acordo com o novo fim a que se destinem.
O plástico vai então voltar à vida, como a fénix da mitologia, mas, ao contrário dela, pode não regressar com a mesma forma. A garrafa do nosso exemplo pode voltar a sê-lo, e armazenar água, tal como a original. Mas também pode dar origem a coisas tão diferentes quanto garrafas de detergente, mochilas, casacos, edredãos, bancos de carros e até ciclovias… Isso mesmo: a primeira foi inaugurada em Zwolle, na Holanda, a 11 de setembro do ano passado. Faz parte do projeto Plastic Road, de dois jovens holandeses, Simon Jorritsma e Anne Koudstaal, e tem como objetivo usar, no futuro, plástico 100% reciclado em estradas, parques de estacionamento, plataformas de comboios ou passeios pedonais.
Pode ver estes exemplos na caixa ao lado. E as novas utilidades não ficam por aqui: em finais de 2017, um grupo de investigadores da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto apresentou num congresso umas havaianas feitas também com este granulado de plástico, entre outros componentes. Mas este é um exemplo ínfimo do que pode ser a economia circular.
Repensar a água
A gestão sustentável da água é outro ponto sensível no nosso século. Quando se fala em escassez de recursos e desperdício, os hídricos são algo em que se pensa logo.
Porque se usa água potável em autoclismos, ou na lavagem dos passeios, por exemplo? Vários projetos experimentais, alguns no nosso país, já ensaiam soluções simples.
Podemos tentar em casa pequenos contributos a este nível. Fazem bem à consciência
Lisboa e Porto já têm o seu Repair Café, onde voluntários ajudam a reparar objetos velhos
e aos cursos de água do País. Os duches mais rápidos também lavam o corpo adequadamente, os ciclos de lavagem da roupa também podem ser bem geridos.
Mas, para o problema da água, basta pensar em números tão simples quanto este: o consumo diário de descargas de autoclismo em casa, num agregado familiar de três pessoas, anda à volta dos 124 litros, considerando que cada elemento da família o faz quatro vezes por dia. Por ano, são 45 mil litros de água potável, usada numa
tarefa tão pouco nobre. Se vivermos numa moradia, talvez seja possível, pelo menos, mitigar este cenário: podemos pensar em instalar reservatórios para armazenar a água do duche e a própria água da chuva. E passar a usar estas fontes de água para as descargas do autoclismo. A água da chuva também poderia servir para lavar pátios e automóveis.
Reciclar tudo, até o tempo
As possibilidades da nova economia são imensas e tocam-nos em vários aspetos da vida. A cooperação é outro dos raios deste círculo. Lisboa e Porto já organizam os seus Repair Cafés, espaços onde voluntários oferecem o seu tempo para reparar objetos envelhecidos ou acidentados. O arranjo é gratuito, e compreende rádios e leitores de CD, TV, vestuário, móveis e outros objetos de madeira, lâmpadas ou relógios. E o que mais possa surgir… Para saber mais, pode consultar o site www.circulareconomy.pt.
Esta iniciativa cumpre outro dos slogans da economia circular: o da reparação como alternativa à obsolescência programada, aquele princípio segundo o qual compramos
os objetos com curto prazo de vida, e depois desembaraçamo-nos deles.
O valor dos produtos e dos materiais deve ser, assim, mantido o mais possível, para cumprir uma vida cheia. A Comissão Europeia antevê, com todo o conjunto de ações que pressupõe a economia circular, amplos benefícios: inovação, crescimento e criação de emprego. Ou seja, tentaremos sair de uma economia linear, em que a indústria extrai materiais escassos, os transforma e os vende. Depois compramos as coisas, usamo-las e deitamo-las fora, acumulando resíduos.
Num sistema colaborativo entre empresas e consumidores, a economia passa a ser um círculo em vez daquela linha reta, e o lixo passa a ser matéria-prima. Ou, como conclui o secretário de Estado Carlos Martins: “Assumir que os nossos resíduos são maté- rias-primas de novos produtos no futuro é central para essa nova abordagem: temos de ganhar consciência de que não existem matérias-primas virgens para alimentar o atual modelo social de consumo”.
Dossiê técnico
Granulado
No reciclador, é transformada em pequenas pastilhas que servirão para fazer outros objetos, incluindo novas garrafas
Compactar
Irá encontrar outros objetos do mesmo plástico no trajeto, sendo compactada em grandes blocos
Ecoponto
Deposite-a no contentor amarelo. Já conhece os outros: o azul para o papel, o verde para o vidro
Separação
A garrafa chega ao centro de triagem, onde será separada dos materiais de composição diferente
Garrafa
Depois de beber a água, não
deite a garrafa no lixo indiferenciado
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Metas de reciclagem e redução de resíduos
Conservar e reparar produtos
Economia de colaboração e não de concorrência
Viver na economia circular
Na verdade, o conceito não é novo. Chamava-se bom senso: a roupa transitava para os irmãos mais novos, depois para os primos mais pequenos. No fim, faziam-se dela panos para limpeza. A água de lavar os legumes servia para regar as plantas. Os frascos tinham uma segunda vida, guardando sementes, botões, parafusos… e aquele doce de abóbora divinal que a avó fazia. Com o passar do tempo, esquecemos estes gestos e o uso único passou a dominar as nossas vidas. Deitámos no lixo uma quantidade enorme de objetos que poderiam ter sido usados por outros ou cujos materiais poderiam ter sido recuperados para fazer novos produtos. Mais tarde, percebemos que não havia matéria-prima suficiente para fazer novos produtos ao ritmo a que eram procurados e que não havia espaço para enterrar tudo o que descartávamos.
Então, o bom senso voltou. Chamaram-lhe ecologia e, agora, economia circular. E é simples: já não precisa de uma coisa que comprou em tempos, como uma impressora que considera ultrapassada, um televisor que agora acha pequeno… então doe. Nem imagina como esses artigos que já não lhe interessam são bem-vindos em muitos lares ou instituições. Tem um eletrodoméstico avariado? Não pense logo que está na hora de o substituir nem parta do principio de que a reparação irá ser quase tão cara como a compra de um aparelho novo. Peça orçamentos antes de decidir.
Inevitavelmente, chegará a hora de ter um produto em fim de vida. Não é viável reparar a máquina de lavar; a caixa vazia de detergente e a lata de atum precisam de um destino… Tudo isto são exemplos de bens de consumo com materiais que podem ser usados para o fabrico de novos produtos. Amáquinadelavartem metais e plásticos que podem ser aproveitados, a caixa de cartão pode dar origem a novas caixas ou a papel higiénico, o metal da lata de atum poderá vir a ser incorporado num carro…
Para que tudo isto funcione, o seu contributo é essencial e cada país tem metas a cumprir. Não quebre a cadeia e seja ativo na economia circular.
Da garrafa à bolinha
Uma garrafa de plástico segue um trajeto próprio, antes de voltar ao mercado como matéria-prima para novos produtos
Depois de separadas por tipo de material, as embalagens são compactadas e enfardadas, seguindo para as recicladoras
Uma vez triturados, os materiais passam por uma série de tratamentos, resultando num granulado que pode, depois, receber um corante. Está pronto a ser usado no fabrico de novos produtos
Novas vidas
Os exemplos de reciclagem do plástico são muitos. Da estrada à mochila, é um material de uso versátil
A primeira cicloviade plástico foi inaugurada emZwolle (Holanda), em setembro de 2018